quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012
Bruno de Menezes ou a sutileza da transição
“...e o casario burguês fechou as pálpebras...”
Bruno de Menezes
A Geraldo, meu irmão, pelo carinho com que me acompanha nesta jornada e cuja visão crítica me estimula a continuar estudando a virada do século
Considero salutar um hábito cultivado por mim ao longo dos anos: o de procurar encontrar nos textos literários, sobretudo nos dos escritores nacionais, de que maneira e em que circunstâncias procuram justificar sua criação, seu ato poético. Com a obra de Bruno de Menezes (1893-1963) aconteceu o mesmo e, mais uma vez, aflorou a explicação, dada pela linguagem, para o seu próprio fazer poético. Assim, pode-se afirmar que o eu lírico de Bruno de Menezes, em algumas situações, deixa escapar, intencionalmente ou não, uma espécie de Arte Poética,[1]que pode modificar-se segundo a variação em que se encontrar, por exemplo, o estado de espírito do eu anunciador. Por outro lado, esta mesma Arte Poética, pinçada aqui e ali, pode, na verdade, não ser a única bússola norteadora da totalidade da produção poética do autor de Batuque. Outras artes poéticas poderão, também, ser depreendidas ao longo da obra – e da leitura plural – que ela sempre proporciona.
Bruno de Menezes, no seu primeiro livro de poemas, denominado Crucifixo (1920), estampa num soneto aparentemente sem nome – porque este subentende-se no próprio titulo do livro:
“Toto Poeta é o Homem-Deus, - incomprehendido.”
No mesmo livro, mas noutro poema – “Idealidade” – continua:
“ Só o Poeta sabe amar as sensações
sempre queridas,
quando doridas.
(...)
Eu, que vivo um Idealismo de ILLusões
Indefinidas,
– quase definidas,
sou um noivo espiritual, com exaltações
de amar na vida
muito além da vida.”
Ora, a meu ver, a chave do discurso poético bruniano parece haver sido encontrada. Para ele, o poeta é: “Homem-Deus”; ser “incomprehendido”; amador das sensações; o que sabe que vive um idealismo de ilusões; um amante do que está para além da vida. Enquanto Homem-Deus, tem consciência de sua onipresença e onipotência poéticas, razão de não poder ser compreendido. Tem consciência, também, de que o mundo artístico é o das sensações indefinidas, das utopias plenas, dos fingimentos, do que não pode ser dito, mas apenas sugerido; é ainda o mundo que habita, inclusive, o lado silencioso da linguagem. Assim é Bruno: canta em Crucifixo, a fé, o domingo de Ramos, o planger dos sinos, a melancolia, a angústia, as mágoas, a saudade, os campos soturnos, tempo, espaço, cores... O próprio titulo do livro já induz a uma linha de leitura, pela simbologia do que representa o próprio crucifixo, enquanto ícone-síntese do cristianismo.
Em 1924, edita seu segundo livro – Bailado Lunar. Em quatro anos, os que separam a primeira da segunda coletânea de poemas publicados, há como que uma virada de página (para usarmos uma linguagem mais descontraída) do que fora escrito anteriormente e do que agora estava registrado. Nos quarenta poemas de Crucifixo, o eu lírico volta-se para os prazeres espirituais, para além do mundo objetivo, real. Nos dezoito de Bailado Lunar, o eu lírico experimenta os prazeres terrenos. E é nesse virar de página que se observa uma nova visão do homem-poeta da passagem do século XIX para o XX. Bruno torna-se um poeta-cantor da Belle Époque,[2] assim como o foram, Theodoro Braga[3] (1872-1953) e João Affonso[4](1855-1924),pintores,desenhadores,cronistas e caricaturistas dessa mesma época. Com a autonomia inerente à linguagem literária, não importa se, cronologicamente, a Belle Époque, enquanto estilo de época, já houvesse desaparecido há mais ou menos dez anos, antes, portanto, da publicação de Bailado Lunar.
A base dessa afirmação está evidente, e de maneira bem clara, na quase totalidade dos poemas desse segundo livro. Que canta agora o poeta de simbólicos detalhes literários art nouveau?[5] Prioritariamente, a figura feminina; a coquette que exibe o corpo gracioso; a mulher amada; a mulher que fascinou por suas roupas colantes ou esvoaçantes que fingiam esconder, mas ao mesmo tempo, expunham a sinuosidade de suas formas esbeltas, elegantes. Bruno canta a mulher sensual, já liberada, artisticamente, desde o século XVII, quando a libertina, o casal feliz, os querubins tornaram-se quase que os primeiros assuntos da representação artística. Assim, sobretudo após o Pré-Rafaelismo[6] e, posteriormente, após o Simbolismo, a mulher consegue liberar-se das tutelas sociais e viver, de fato, as paixões arrebatadoras que antes existiam apenas na dimensão da Literatura , ou da arte em geral, marcadas pelo estigma do pecado e das pressões sociais, a exemplo dos desejos poeticamente ardentes de Ema Bovary, Luíza,Capitu, personagens de Gustave Flaubert (1821-1880), Eça de Queirós (1845-1900) e Machado de Assis (1839-1908), respectivamente; canta ainda, o progresso obtido a partir da Revolução Industrial; os novos usos e costumes da sociedade local (cada vez mais estratificada); os logradouros públicos, e mais outros aspectos que sua sensibilidade de poeta captou,conforme veremos.
Ao poetizar a figura feminina, Bruno de Menezes associa-lhe a natureza, assim como o fizeram os artistas art nouveau, a exemplo de Emile Gallé (1846-1904),[7] Marie-Alphonse Mucha (1860-1939),[8] Gustav Klimt (1862-1918),[9] dentre outros. Ao pássaro, são aproveitadas penas para o aprimoramento de trajes finos;
“Trabalham tanto as chapeleiras, pobrezinhas,
Sangram os dedos, cançam a vista
à luz do dia, à luz das lampadas cegantes,
fazendo voar azas inertes de andorinhas,
a completar com um chapeo lindo uma “toilette”.
Chepeleirinhas
e os frutos também servem para aperfeiçoar a beleza dos chapéus femininos
“Para onde vaes?
Vejo do teu chapeo os cachos de uva
Irás à tôa
ou não voltas mais?”
Numa Tarde de Inverno
Não foi privilégio somente do art nouveau utilizar os motivos florais como elementos decorativos, pois desde o século XVIII estes vêm ornamentando, na Europa e noutros continentes, sobretudo o vestuário,[10] móveis, appliques e porcelanas
.Com os românticos, o hábito de cultivar, utilizar e poetizar a flor natural, exótica, tornou-se uma espécie de imposição social e artística. Com o art nouveau, arte floral[11] invadiu todos os campos,[12] inclusive o literário. E Bruno penetrou nesse campo conferindo à flor múltiplas finalidades, conforme exigia a estética da época. Por isso, encontramos, em seus textos, a flor como elemento decorativo utilizado, também, como o foram as penas de pássaros, na confecção de chapéus de mulheres,
“dando vida às plumas, colorindo as rosas,
que sabem que esses chepéos ultra elegantes
da menina leviana e da mulher “coquette”.
Chapeleirinhas
ou a flor utilizada como metáfora feminina da personificação da lua, então metamorfoseada em lírio. Esta flor foi a escolhida pelos artistas art nouveau para simbolizar o perfume inerente à jovem da virada do século, daí porque se encontra adornando-a em diversas representações artísticas. Com esse recurso, Bruno aromatiza o cenário onde a lua irá se apresentar como bailarina etérea e o palco expressa, pela amplitude semântica e simbólica que a palavra céu parece sugerir, “a manifestação direta da transcendência, do poder, da perenidade, da sacralidade, aquilo que nenhum vivente da terra é capaz de alcançar”.[13] É importante realçar que Bruno não enfatiza o ritmo, mas a cadência, como se, para ele, poeta, o mais importante fosse o tempo sem ruídos, o bailado silencioso onde “a haste de um grande lyrio que baloiça” ─ marca o “compasso floral” do bailado lunar.
“A lua é a bailarina immemorial dos ares.
(...)
O céu é o palco irreal onde a Lua se exibe...
(...)
A Lua, arqueada e fina, é a haste de um grande lyrio
que baloiça, em cadencia, em meio das estrelas
no compasso floral desse bailado empyreo...
Poema-título
Além disso, Bruno utiliza, ao lado da flor, as árvores para compor a paisagem na qual a mulher está inserida como parte integrante e fundamental da natureza poética. Em “Passaste”, poema lírico no qual o poeta, assumindo a posição de um eu observador, isto é, de um eu narrador, contrapõe à nitidez da paisagem e aos acessórios que complementam o vestuário, a imprecisão, leia-se, a leveza da figura feminina. Esta se lhe oferece ao olhar como um vulto quase etéreo.
“Linda sombrinha.
Dentro do parque luminoso
teu vulto vinha
esplendoroso.
Num chafariz onde um tritão nadava esperto
um lyrio de agua se esfolhava crystallino.”
E continua com a mesma tônica do eu observador em “Numa Tarde de Inverno”, poema em que recorre inclusive ao Cubismo como para confirmar a pluralidade estética, o “traço moderno”, como ele próprio diz que o “Cubismo inventa”. Na verdade, Bruno estava imprimindo o seu traço moderno aos poemas de Bailado Lunar.
“Chove. Tarde de inverno.
A rua é triste e as casas têm a cor nevoenta.
Nos jardins os choupos são lágrimas verdes,
São um traço moderno
dessas silhuetas que o cubismo inventa.
Toda de branco ─ esguia garça scismarenta ─
e esse nome andaluso de Mercedes
temendo a chuva
sobes a um “taxi”, que buzina e voa ...”
Para fechar esse quadro, no qual o poeta recorre ainda a árvores esgalhadas, finas, a hastes, a ramos, formando “arabescos e recamos” verbais, continua aflorando, de maneira clara ou sugerida, metaforizada ou não, a figura da mulher, ou melhor, a sua sensibilidade. Essa afirmação pode ser comprovada nos seguintes versos:
“A Lua, levantina, é uma silhueta longa,
(...)
Que se arqueia e se afina e se acurva e se oblonga,
toda coberta de arabescos e recamos.”
Poema-título
Como também não poderia deixar de ser, o nosso poeta cria verbalmente a vitrine que expõe a moda, as jóias, camafeus, braceletes, vidrilhos, lantejoulas de coral, pedras preciosas ─ turquesa ─ plumas, chapéus coloridos de rosas, sombrinhas, leques, luvas, sedas, organdy, cremes, peliças, perfumes, “battons sangretejantes”, capas de arminho. Todos esses complementos, tão indispensáveis ao chic vestuário feminino de então, e aqui dispostos um ao lado do outro, são poetizados em diversos textos ao longo de Bailado Lunar. À medida que a leitura se desenvolve, aos complementos é associada a ideia do surgimento de uma nova vitrine imaginária que se oferece ao olhar curioso de passantes, também imaginários, e ávidos em adquirir as últimas novidades, o dernier cri da moda europeia. Vejamos alguns trechos de poemas, nos quais aqueles acessórios verbais estão expostos (agora não mais à compra) e sim como elementos evocadores de um passado que só a memória-recordação, ou só o tempo psicológico, pode dimensionar no presente.
“Chispam as jóias na vitrina...”
Deslumbramento
“Teu leque lembra um purpurino cravo,
rosas de jaspe e lantejoilas de coral
num painel de aquarellla do Japão.”
Sobre a Gaze de Um Leque
Chic
Mais corpo que vestido
Sedas, cremes, pelliças
(...)
Que originaes suas joias!
Camafeus feito annéis, braceletes,
Crachás
Ba-ta-clan
“Passaste,
em ondas de “organdy”
esvoaçante e serpentina.”
Filmando
Usa perfumes “Chanteclair”,
tem uns bandôs, louros e crespos,
e unhas em garras... tenebrosas.
(...)
Traja vestidos mais collantes
que os figurinos e modistas
combinam sempre a seu prazer
E a sua bocca?... É a última rosa
tinta a “battons” sangretejantes”
Silhueta Viva
Toda essa espécie de filme passado diante do leitor, traz consigo um lado por detrás das câmeras que quase nunca aparece, mas que o poeta não esqueceu de registrar: foram as mãos que contribuíram para tornar as mulheres elegantes, sedutoras, chics. Assim, e utilizando termos afetivos, Bruno enaltece o trabalho artesanal das “chapeleirinhas” e das “midinettes”.
“Trabalham tanto as chapeleiras, pobrezinhas,
Sangram os dedos, cançam a vista
à luz do dia, à luz das lampadas cegantes,
fazendo voar azas inertes de andorinhas,
a completar com um chapeo lindo uma “toilette”.
(...)
É uma heroína a minha pobre “midinette...”
Chapeleirinhas
Para completar ainda essa película, esse tecido verbal art nouveau, no qual conviviam, junto com os novos hábitos sociais importados da Europa, Estados Unidos, Oriente, o cotidiano da Belém provinciana, o poeta registra em Bailado Lunar alguns reflexos da Revolução Industrial. Desse modo, não esquece de falar em “parque luminoso”, “chafariz”, “taxi que buzina e voa...”, “cinema”, “cock-tails e sorvetes”. Registra também o “último baile chic da Assembleia”,
“a Avenida Bolonha”, evidenciando, com isso, a mudança cultural que sua cidade construída de palavras havia experimentado. Para melhor visualizar esse quadro social, transcrevamos mais dois trechos dos poemas “Ba-ta-clan” e “Filmando”, respectivamente:
“Chic
Era Venus Astarthéa,
no último baile chic
da Assembléa.
E o teu olhar...
Ó minha girl, loura e risonha!
Queres um rei? Sou Boabdil!...
Dou-te um riquíssimo alcaçar,
dou-te a Avenida do Bolonha!”
Diante desses exemplos, com os quais se procurou mostrar, sobretudo, detalhes simbólicos do que numa leitura plural a visão do poeta captou da realidade, parece que Bailado Lunar registra apenas um lado, o da opulência, vivido pela Gostosa Belém de Outrora,[14] para usarmos o título de um livro de crônicas de De Campos Ribeiro. Bailado Lunar, entretanto, não transmite somente prazeres materiais experimentados por um sujeito enunciador, conforme esta linha de leitura art nouveau parece sugerir. Nele, a ideia referida, inicialmente, ou seja, a do poeta incompreendido, também perpassa, de maneira mais ou menos sutil, ideia que se repete posteriormente, em Onze Sonetos (1960), e que está mais evidente no soneto número 6. Em Bailado Lunar, trata-se da incompreensão de um eu que, por amar a vida, não aceita os aspectos contingenciais a ela inerentes. E uma das maneiras de o poeta reagir ao fato de não ser compreendido, no caso, pela figura feminina, é atingir o outro, o seu adversário, com a arma contundente da ironia.
É muito comum encontrar-se na leitura de analistas da virada do século, entenda-se, cronistas, poetas, articulistas de jornais e revistas, a forma de tratamento com que os homens, mais precisamente os jovens, eram contemplados pelos seus adversários amorosos. É claro que Bruno estava atento a isso e, no poema “Ba-ta-clan”, ironiza o outro com um diminutivo nada afetivo. Trata-se do “cinturinhas”.[15]
Deixando de lado a ironia, que seria uma nova abordagem de leitura, e voltando à nossa linguagem de Bailado Lunar, observa-se que não é fácil distinguir nela “o ornamento da substancia ornada”,[16] podendo-se conceituar, por isso, o livro de poemas como um livro de época, justamente da que envolve uma simbólica transição ornamental fin de siécle. No entanto, no Bailado Lunar o vocabulário e o espírito dos versos e dos poemas e mais a estrutura de seus conteúdos, sempre plurais, são elementos também convencionais e mediadores entre o mundo e sua representação. Assim, a paisagem social de Belém da primeira década do século (pelo menos ao nível das aparências), foi semanticamente poetizado em Bailado Lunar.
A força dos elementos simbólicos é tão relevante que, se fizermos uma leitura prazerosa do livro de 1924, seguindo-se a orientação barthesiana,[17] teremos uma leitura que vai ao encontro sugestivo expresso pelo termo “bailado”. Observaremos, assim, em vocábulos isolados, ou em apenas um ou mais versos no interior de um mesm texto ou estrofes, ou finalmente no poema como um todo que, na visão do poeta “incomprehendido”, o deslumbramento da menina leviana, da “coquette” ou da mulher misto de “fellina” e “ophidica”, ou ainda da recoberta de sedas (ratificando ser a moda também um dos meios de expressão dos valores da modernidade) e jóias originais[18] projetam-se como aquela espécie de filme (já citado anteriormente) pelas acostumados retinas do eu lírico de Bruno de Menezes. O poeta, no entanto,teve consciência da fugacidade daquele momento vivido pela remanescente elite social e proporcionado pelo que restou das “folias do látex”.
Em “Deslumbramento”, e agora noutra situação, ao mesmo tempo em que “Chispam as jóias na vitrina...”, diz o poeta mais adiante: “E o brilho do ouro é tão fugace/que é bem melhor delle fugir”. Essa posição de Bruno configura uma certa cisão dialógica dentro do mesmo poema. Parece querer lembrar ou sugerir que os adornos são passageiros (porque moda) e contribuem para despersonalizar a mulher ou para lhe impor uma nova personalidade. O preço da jóia, sabia o poeta, constituiu uma dívida que a história não perdoou, conforme esclarecem os versos nos quais a estratificação social e a exploração da mulher pela mulher estão evidentes; daí porque em “Chapeleirinhas” e em “Passaste...” , ao evidenciar a elegância das mulheres, aponta-lhes o poder de indiferença[19] e de sedução. O primeiro, refere-se ao trabalho incansável das costureiras humildes; o segundo, refere-se aos olhares sensuais lançados aos “cinturinhas”:
Chapeleirinhas!As mulheres elegantes
se isto soubessem nem queriam dar na vista
Tangueia, fox-trota, quando nada
e lança olhares fulminantes
aos “cinturinhas.”
Tem umas pernas delirantes...
Quando nada
tremem-lhe os seios de nervosas linhas.
Nesse poema, “Deslumbramento”, Bruno de Menezes prenunciou o que posteriormente cantou em “Do Romance de Pierrot”, poema em que agrupa num mesmo verso, isto é, num mesmo palco, quatro personagens universais que, simbolicamente, poderiam compor (se é que metaforicamente não compuseram), dentro da Belle Époque, um grande espetáculo, uma grande comédia. Assim:
“Colombina, Arlequim, Pierrot, Polichinelo
findam a pantomima e choram sem querer...”
Com esses versos, a colombina, símbolo da namoradeira alegre, fútil e bela, esposa ou amante (ou a “concubina fogosa do universo disperso”, de que fala Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa)[20] de um espírito divertido ─ o Arlequim ─ encerra seu grande momento artístico. O ingênuo e sentimental Pierrot, o personagem títere, também perdeu sua razão de ser e, quando a luz do abat-jour apaga-se, a vida da Belém da virada do século “retorna a insipidez monótona da praça”.
Obrigada
AGRADECIMENTOS
Ao governo do Estado do Pará: Seduc, Fundação Curro Velho, Casa da Linguagem; Secult: CBP,DPHAC ─ Ana Lúcia Ferreira Olívia, Milena Gama Batista, Paulo Cal, Vitória Seráfico; CAI ─ Flávio Macedo. À família Bruno de Menezes, enfim, a todos que contribuíram para a realização da palestra Bruno de Menezes ou a sutiliza da transição. À Universidade Federal do Pará e seu Núcleo de Artes, pela publicação.
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[1] Não se trata de uma Arte Poética como a de Aristóteles, a dos Pisões, a de Boileau,Chapelain, dentre outros. Trata-se de uma justificativa literária, a exemplo da “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa; “A Poética”, de Manuel Bandeira; da “Explicação” ou do “O Lutador”, de Carlos Drummond de Andrade; da “Psicologia da Composição”, de João Cabral de Melo Neto, ou da “Arte Poética” (a de apenas quatro versos), de Paulo Plínio Abreu
[2] “A Belle Époque é um estado de espírito que se manifesta em dado momento na vida de determinado país”. Kossoy ET ali. Arte no Brasil: Cinco Séculos de Pintura, Escultura , Arquitetura e Artes Plásticas, 1979: Abril Cultural, p.560,vol.II.Ilustr.No Brasil,costuma-se situar a Belle Époque entre 1889 – Proclamação da República – e 1922 – Semana de Arte Moderna, S.Paulo.
[3] Theodoro Braga, pintor,desenhista,caricaturista,chargista, autor da ilustração da capa do primeiro número da “Revista Paraense” (30 de janeiro de 1909), na qual satiriza o intendente Lemos, o governador Augusto Montenegro, este deixando o cargo, e o governador que o substituiu, João Coelho. Desenhos interessantes quanto à jocosidade foram “A Última Criação da Moda! – Modernissimos Modelos de Chapéus”, insertos na mesma revista, em 9 de outubro de 1909. Tarata-se de outra sátira, agora à moda da época. Como pintor, é autor de várias telas, de comprovado valor artístico, como a “Fundação da Cidade de Belém” (5m x 2,5m), de propriedade do acervo da Pinacoteca Municipal de Belém; “Périlo Máximo de Antonio Raposo Tavares”, que integra o acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo; “Padre Provinçal Alexandre de Gusmão” e “Anhanguera”, óleos pertencentes ao Museu Paulista; “Vieira na Redução das Tribos do Marajó, em 1657” (1917), óleo do acervo do Instituto Histórico de Alagoas – Maceió – dentre outros trabalhos de igual valor estético.
[4] Pintor, desenhista, caricaturista e autor de crônicas, João Affonso escreveu, dentre outros trabalhos, Três Séculos de Modas (1916), para comemorar o tricentenário da fundação da cidade de Belém. Nessas crônicas, com extrema espirituosidade, descreve a vida social da Belém da Belle Époque, com suas “melindrosas e almofadinhas”, conforme diz Annunciada Chaves, no prefácio à segunda edição, publicada pelo Conselho Estadual de Cultura, em 2 de janeiro de 1976.
[5] Ao falar em poeta de detalhes art nouveau, não pretendo dizer que exista um art nouveau rigorosamente literário, até porque no período em que esse estilo floresceu e declinou havia movimentos literários organizados, como o Realismo, o Parnasianismo, o Simbolismo (1885-1910). Isso não quer dizer que o art nouveau não possuísse objetivos e características próprias. A respeito desses objetivos e características, ver Argan, Giulio Carlo. Arte Moderna: do Iluminismo aos Movimentos Contemporâneos. Trad. Denise Bottmann e Frederico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1922.709 p.
[6] O Pré-Rafaelismo pretendia representar a natureza da forma mais verdadeira possível. Como a pintura renascentista também influenciou, de maneira decisiva, a moda do final do século XIX e início do XX, isto é, mais precisamente o vestuário feminino, quer pela sugestão romântica, quer pela simplicidade medieval, a virada do século criou um modelo sem espartilhos, deixando transparecer, sobretudo, a forma natural da silhueta da mulher.
[7]
[8] Marie-Alphonse Mucha. Notabilizou-se como desenhista de cartazes criativos. Criou o protótipo da mulher bela, cujos cabelos apresentam a fluidez e a sinuosidade que marcaram a estética art nouveau. Ao vestir suas mulheres, a ornamentação tornava-se superior à figura representada.
[9] Gustav Klimt. Tornou-se célebre pela capacidade de combinar formas vigorosas, geralmente de inspiração acadêmica, com suntuosa decoração, levada às últimas consequências. Embora possua um toque acadêmico de nus, esse toque foi superado por sua capacidade voltada à composição global, que é elegante e harmoniosa.
[10] O Brasil apresenta um exemplo típico da utilização de bordados com flores, no vestuário masculino. Tomás Antonio Gonzaga (1747-1810), poeta árcade brasileiro e autor de Marília de Dirceu, bordava suas próprias roupas. Os punhos e golas do vestuário setecentista apresentam ricos bordados, brocados, rendas, veludos, em que linhas coloridas misturam-se aos fios dourados e prateados para conferir maior requinte aos acabamentos.
[11] Louis Majorelle (1859-1926), um dos amantes da flor, batizou sua produção mobiliária de “Orquídeas” ou “Nenúfares”, por exemplo. Tiffany criou um vaso e o denominou “Magnólia”. Além dessas peças, há outras na história do estilo de época.
[12] O art nouveau invadiu todos os campos da arte utilitária ou não, sendo mais explorado nas artes visuais e aplicadas. Manifestou-se na Arquitetura, Escultura, Pintura, Música e Literatura. Como o objeto deste trabalho é a Literatura, lembramo-nos de dois exemplos. Primeiro, Georges Charles Huysmans (1848-1907) consagra, em sua obra-prima A Rebours (1884) várias páginas à flor, como por exemplo, ao caladium, planta ornamental, perfumada e colorida. O segundo é Oscar Wilde (1854-1900). Ao descrever um de seus personagens femininos diz:”Sibyl Vane se movia como um ser de um mundo mais belo. Seu corpo flexível na dança, era como uma planta sobre a água . As curvas de seu busto eram as de um lírio branco. Suas mãos parecim feitas de frio marfim”. (In: O Retrato de Dorian Gray. Trad. Oscar Mendes, Rio de Janeiro. Aguilar Ltda. 1961.p.117.il.). Na Literatura brasileira citem-se, como exemplos, Augusto dos Anjos, Coelho Netto e Graça Aranha, com o romance Canaã, segundo José Paulo Paes no trabalho intitulado Canaã e o Ideário Modernista.
[13] Chevalier, Jean e Gheerbrant, Alain. Dicionário de Símbolos: Mitos, Sonhos, Costumes, Gestos, Formas, Figuras, Cores, Números. Trad. Vera da Costa e Silva, Raul de Sá Barbosa, Angela Melim, Lúcia Melim. Rio de Janeiro. José Olympio, 1991, p.227
[14] Gostosa Belém de Outrora, livro de crônicas de autoria de De Campos Ribeiro, também registra a vida de Belém das primeiras décadas do século XX, incluindo, nele, sobretudo, os tipos populares, a animada vida dos subúrbios, o carnaval...
[15] “Cinturinhas”: esta expressão linguística, apoiada no contexto sociocultural do final do século XIX e início do século XX, carrega consigo uma interpretação estilístico-semiológica que reflete a relação do discurso pejorativo estabelecido entre o sujeito enunciador e o objeto receptor. Por volta de 1880, os homens usavam calças apertadas e justas, modelando-lhes o corpo. Eram calças altamente eróticas. Faziam parte do jogo da sedução.
[16] Nosa visão de ornamento vai ao encontro do que diz José Paulo Paes:”O art nouveau se distinguiu, sobretudo, pela sua preocupação com a consubstancialidade do ornamento. Isto é, do ornamento que fosse, não postiçamente acrescentado à coisa ornada, como no ecletismo arquitetônico do século XIX, mas a ela estivesse ligado essencialmente”.(In:Canaã e o Ideário Modernista, São Paulo.Edusp. 1992,p.18)
[17] A respeito da leitura prazerosa, ver Barthes, Roland. Le Plaisir du Texte. Paris. Seuil.1970.105 p.
[18] Com o aperfeiçoamento das máquinas e com a preocupação dos artistas criarem peças exóticas, originais, o art nouveau fez combinações e adaptações com peças produzidas em série. Assim, no momento em que Bruno diz:”Que originais as suas jóias! / Camafeus feito anéis, braceletes, / crachás”, vem confirmar o poder criativo dos designers da época. As mulheres poetizadas por Bruno, guardando-se a devida distância espaço-temporal e guardando-se, também, a maneira de representá-las, lembram, inclusive, as mulheres cheias de pedrarias luminosas, como a “Salomé”, de Gustave Moreau (1826-1898), ou as mulheres coloridas e sensuais de Gustav Klimt (1862-1918), ou, finalmente, um cartão-postal da célebre Cavaliéri, em que pedras coloridas e artesanalmente colocadas, ornam cabelos, pescoço e orelhas dessa famosa cantora.
[19] Com relação a essa indiferença, transcrevemos o que diz Elizabeth Wilson no trabalho intitulado Enfeitada de Sonhos, p.93: “A exploração dos trabalhadores da indústria do vestuário e de têxteis do século dezenove ─ na sua maioria mulheres ─ é uma história demasiado conhecida, e o horrível contraste entre o luxo da moda e o sofrimento daquelas que contribuíam para a tornar possível, viraram muitos reformadores do século dezenove totalmente contra ela. A mulher elegante, encaixada na sua crinolina , ou na sua saia de balão, transformou-se num símbolo da hipocrisia burguesa, tanto para os representantes dos trabalhadores como para as feministas. À velha reprovação moral da vaidade vinha acrescentar-se uma consciência da sua injustiça”.
[20] Pessoa, Fernando. Obra Poética. Rio de Janeiro: Aguilar Ed., 1969.p.336
segunda-feira, 2 de maio de 2011
Mário de Andrade no Pará, os sucessos e documentos da viagem e algumas considerações sobre o modernismo
Dá pano pra muita manga a história da viagem de Mário de Andrade à Amazônia, em 1927, de que a parada obrigatória em Belém do Pará veio a constituir fascinante capítulo. Tão fascinante, de fato, mas igualmente tão ignorado, que não seria talvez fortuito, à luz do noticiário da imprensa belenense da época, reconstituí-lo no conjunto e no detalhe, retraçando os passos do poeta na capital do Pará. Tudo é matéria à curiosidade dos biógrafos, e foi pensando neles, menos que nos professores e críticos, de literatura, que resolvemos alinhavar as considerações abaixo.
A rigor, a aventura amazônica de Mário começa a 6 de abril de 1927, quando, de São Paulo, ele anuncia em carta a Manuel Bandeira: “Creio que vou me embora pro norte mês que vem, numa bonitíssima duma viagem. Dona Olívia faz tempo que vinha planejando uma viagem pelo Amazonas a dentro. E insistia sempre comigo para que fosse no grupo. Eu ia resistindo, resistindo e amolecendo também. Afinal, quando quase tudo pronto, resolvi ceder mandando a merda esta vida de merda. Vou também. Isto é, ainda não sei bem se vou, só falta saber o preço da viagem. Se ficar aí por uns quatro contos, vou, se ficar pra cima de cinco não vou. Tenho de emprestar dinheiro pra ir e isto vai me deixar a vida bem difícil depois e os projetos no tinteiro”. E mais adiante, na mesma carta, detalha o projeto, e até o trajeto, da romaria: ”Puxa! creio que nem contei pra você por onde vai ser a nossa viagem. É melhor mesmo do que falar noutras coisas. Vamos pelo Lóide Brasileiro parando de porto em porto até Manaus. De lá subimos o Amazonas já com tudo determinado pelo Geraldo Rocha pra pararmos em todas as partes interessantes, continuamos pelo Madeira e vamos parar na Bolívia. Depois não sei como é a volta, sei que tomamos a Madeira-Mamoré até parece que Guaiara (sic, por Guajará) Mirim e depois não sei mais nada. Vamos D. Olívia, Paulo Prado, o Afonso de Taunay e parece que mais uma pessoa”. E conclui, já arquitetando planos para a volta ao Sul: “Como você vê as perspectivas são as melhores deste mundo. Peço quatro meses de férias. Parece que a viagem dura três. Se durar e achar jeito, na volta me desligo da comitiva pra parar um pouco mais com o Cascudinho, em Natal, e no Recife e na Bahia. Isto porém está muito problemático. Aliás a viagem toda pra mim...(1)
Se a viagem ficou ou não acima de quatro contos, e se o poeta encontrou enfim quem lhe emprestasse o dinheiro, eis a questão. O que já não se questiona, porém, é a partida para o norte, cinco dias depois desta carta, sendo de salientar que será como secretário particular de D. Olívia que vai Mário aparecer, logo mais, nas manchetes da imprensa de Belém. Vale igualmente adiantar, a título de esclarecimento e correção de fatos, que nem Paulo Prado nem Afonso de Taunay participaram da aventura. Com efeito, nenhum dos dois escritores consta da lista de passageiros fornecida pelo Loide aos jornais belenenses do tempo, os quais apenas registram, além de D. Olívia e Mário, as três outras pessoas, todas por sinal mulheres, que integraram no final das contas a caravana: Madalena e Helena Nogueira e Dulce Amaral, filha mocinha de Tarsila do Amaral. Esta Dulce, aliás, Paulo Duarte confundiria com a própria pintora ao referir-se, de passagem, à expedição de 27 no seu Mário de Andrade por ele mesmo (2). A julgar pelas mencionadas listas de passageiros, o grupo saiu do Rio e não de Santos, e levou oito dias para chegar a Belém. Escalando na Bahia, em Pernambuco e no Ceará, viajaram todos em primeira classe, e o nome do navio do Loide que os trouxe, Pedro I, não soaria mal aos ouvidos do modernista que, cinco anos antes, em Paulicéia Desvairada, alinhara com as “juvenilidades auriverdes” no oratório profano “As Enfibraturas do Ipiranga”. Tem lá o seu sabor, principalmente quando se preserva a grafia da época, a descrição que da entrada do barco na baía de Guajará, em Belém, dá-nos a “Folha do Norte” de 20 de maio de 1927, na coluna “Mares e Rios”: “Ingressando no quadro de franquia pelo canal de dentro da Porto of Pará, foi até em frente ao Castello, de onde demandou o cais, atracando às onze horas, em frente ao galpão número 3. Nesses (sic, por nesse) momentos, entre o agitar dos passageiros, preparando-se para desembarcar, se fazia ouvir, executando vários trechos de música, o afinado “tercetto” de bordo. No cais, suportando o forte calor causado pelo verão, que se aproxima, viam-se inúmeras pessoas aguardando o momento de abraçar os que chegavam. Nas pesquisas que fizemos a bordo entre os passageiros, procurando saber das novidades, fomos informados da satisfação que entre todos reinava pela ótima viagem que vinha de fazer o “Pedro I”, cuja oficialidade a todos soube cativar com as suas atenções”.
Eis a citação a que nos referimos: ”No ano anterior (1927), Mário de Andrade, na companhia de D. Olívia Penteado, de Tarsila e sua filha Dulce e outros, havia realizado uma longa viagem pela Amazônia, subindo o grande rio até Iquitos. Trouxe um mundo de notas sobre costumes, folclore musical e observações pessoais. Esta viagem abriu-lhe as portas do entusiasmo pelo norte e pelo nordeste do Brasil, o que motivou outras idas posteriores àquelas paragens e consolidou o seu amor brasileiro por essa imensa e heróica região, onde o Brasil toma aspectos originais inteiramente seus. Macunaíma acolheu, depois de pronto, algumas influências nortistas e nordestinas. Sim, algumas apenas,porque quando se deu a viagem pelo Amazonas, Macunaíma,já estava pronto para a tipografia”. Corretas no conjunto, principalmente no que tange ao Impacto da aventura amazônica na pessoa e na obra de Mário, as observações de Paulo Duarte pedem não obstante duas retificações, além da que já fizemos em relação à Tarsila. Pra começar, não é certo estivesse Macunaíma pronto para a tipografia, quando se deu a viagem ao Amazonas. Pois Mário não afirmou a Bandeira, em carta de 4-10-1927 (op.cit.d.175), “estou passando a limpo o Macunaíma?” Segundo, o autor desta rara rapsódia nunca mais retornou à Amazônia, embora ansiosamente o desejasse, a ponto de recorrer, para tanto, à influência de amigos. Contou-nos o compositor Waldemar Henrique, uma dessas amizades, que, quando funcionário do DEIP em Belém, recebera de Mário mais de uma carta neste sentido, nas quais o poeta indagava da possibilidade de retornar a Belém mediante interferência da imprensa ou do governo, fato que infelizmente jamais ocorreu.
Nesta cena de cais, digna do Jorge Amado de Os Velhos Marinheiros, apraz imaginarmos o carão alegre do Mário músico, rindo com todos os dentes do “tercetto” de bordo, com certeza menos afinado do que sugere a ingenuidade do trêfego repórter. Enfim, importa é que o escritor e a comitiva encontraram, ao desembarcar, tratamento de primeira, recebidos que foram pelos maiorais da terra, destacando-se entre eles o heráldico dr. Samuel Mac-Dowell, cuja árvore genealógica Ricardo Borges levantou com esmero nos seus Vultos Notáveis do Pará (Belém, Conselho Estadual de Cultura, 1970). D. Olívia foi mesmo conduzida ao famoso Grande Hotel no auto governamental do então presidente do Estado, dr. Dyonísio Bentes, que quatro dias depois regalaria os visitantes com um “delicado ágape”, no qual o próprio dr. Dyonísio, em “ligeira oração”, testemunhou o seu apreço e o de sua família à distincta “touriste” paulista” (“Notas Mundanas”, “Folha do Norte” , 25-5-1927). Qual seria de esperar, D. Olívia agradeceu a gentileza do governante através de Mário de Andrade, o tão certo secretário, que então improvisou um discurso referido mais tarde em carta a Bandeira: “Imagine porém que até um discurso de improviso tive de fazer respondendo a uma saudação do Dionísio Bentes, presidente do Pará. Sou incapaz de improvisar. Falei um quarto de dúzia de coisas familiares a me assentei tremendo feito bobo. Pelo menos asneira creio que não saiu nenhuma não”. (3)
que ela “gozava” o poeta e músico maluco, de todas as formas possíveis” (p 26). Evidentemente, ao escrever o seu opúsculo, Castello Branco.
Não se julgue, entretanto, das recepções e menções honrosas a D. Olívia, que Mário jazia na sombra, encarado apenasmente como ajudante de ordens da ilustre dama, qual sugeriu há coisa de um ano o jornalista Carlos Heitor Castello Branco, repetindo, com Sérgio Olidense, a história dum Mário amargamente recebido no Pará, onde “parecia uma figura sem nenhuma expressão no cenário literário do país”. (4) A verdade não é esta, e requer, além do que até agora ficou dito, um esclarecimento e uma digressão. Certo, a imprensa de Belém ocupou-se bastante de D. Olívia, porem menos por bajulação ou caipirismo que pelo fato de ser a visitante, ao fim e ao cabo, figura de incomum destaque na vida social e intelectual da nação. Além de rica, bem nascida e benemérita de causas filantrópicas – em Manaus, por exemplo, doou dois contos de réis a casas de caridade, segundo telegrama publicado n‟ “O Estado do Pará” de 17-6-1927 – mantinha D. Olívia, como se sabe, um conhecido e concorrido salão literário em São Paulo, ponto de reunião da inteligência da época, e infelizmente ainda por estudar em suas relações diretas com o Modernismo. Havia damas, havia salões naquele tempo, e até os jornalistas da província sentiam o que isto representava em termos de notícia e de cultura. Ainda assim, o brilho dos elogios a D. Olívia – “ Perlustra a Amazônia o espírito fulgurante de uma ilustre fazendeira paulista”, “A ´tournée´ de uma ilustre dama brasileira” etc. – não ofuscou na imprensa do Pará a estrela de Mário de Andrade, que em dado momento chegou mesmo a suplantar a do aviador Lindenberg, àquela altura empolgando os jornais do mundo com a façanha de seu “raid” intercontinental. Com efeito, durante os dias de permanência do poeta em Belém, os periódicos publicaram-lhe a fotografia pelo menos quatro vezes, das quais apenas uma em companhia de D. Olívia e das moças aludidas mais alto. E ao ilustrar verbalmente estes retratos, por sinal de muito interesse para uma iconografia do autor, jamais a linguagem do repórter desferiu nota negativa, a não ser, talvez, no estilo, quando louvava no lírico da Paulicéia o “estro poético”, “a esthesia do escriptor”, “a fulgurante pena”, e outros bibelôs do gênero, resíduos de uma linguagem parnasiana e pós-simbolista a que também não deixaram de pagar tributo, em maior ou menor escala, alguns de nossos mais ferozes modernistas.
De qualquer modo, o documento por ventura mais curioso, de toda esta literatura panegírica, será, em matéria de estilo quanto de ideias, a crônica “Mário de Andrade”, do clínico Gastão Vieira, estampada n‟ “O Estado do Pará” de 22 de maio daquele ano.. Mário aí aparece como “grande menestrel e polpudo prosador (sic)”, dono de um estilo “rombudamente elegante” e de “subscritos” que provocavam no cronista-médico autênticos “delíquios de goso”. Discorrendo sobre Paulicéia Desvairada, afirma Gastão Vieira que este “livro-panphleto deixa transparecer a finíssima agudeza de Mário” assim como, em Losango Cáqui, a sua originalidade residiria no escrever “talqualmente como o povo fala”. O cronista vislumbra no visitante do Sul “um intelectual de altíssimo valor”, “uma notabilíssima cultura”, “o mais bizarro escritor que já nasceu sob o céu do Brasil”. Que o adjetivo é muito perigoso, principalmente nos trópicos, dá-nos prova sobeja a crônica em discussão. Mas a verdade é que ela também espelha, descontada a suposta ironia de certas passagens ou a ambiguidade de certos elogios – a exemplo daquele em que, repetindo Agripino Grieco, o articulista escreve da Paulicéia que foi para os burgueses aturdidos “pior que um socco na bocca do estômago” – a reação de um literato do “Establisment”, certamente de formação parnasiana às criações modernistas do autor da rua Lopes Chaves. Reação que ainda serve para registrar, com fidelidade, o pulso polêmico e espiritual da província frente aos programas estéticos de 22 – fato a considerar com carinho numa história geral do Modernismo no Brasil. Outros registros houve, além do de Gastão Vieira, no referente à visita e à figura de Mário nas folhas de Belém, sempre ávidas de surpreender o poeta (e a comitiva) em seus passeios pela cidade e pelos caminhos aquáticos da região. Constituindo, todavia, matéria de interesse exclusivamente mundano, escapam ao âmbito do presente trabalho, em que se procurou reduzir ao essencial a informação dita de circunstância. Transcrevemos, não obstante, pelo pitoresco da coisa, a cartinha que Mário enviou a “O Estado do Pará” de 20-5-1927, retificando a notícia aí divulgada, no dia anterior, de que “o dr. Mário Andrade (sic)” fora “secretário particular do dr. Washington Luiz, quando na sua presidência de S. Paulo”. Sob o título “Uma carta” a retificação publicou-a “O Estado” logo no dia seguinte, e com destaque, embora a imprensasse entre um “Plantão das farmácias” e um reclame do Rapé Oxan, que combatia defluxos e provocava “gostosos espirros...” Eis o texto:
“Sr. Redator d´”O Estado do Pará”: Li hoje no seu excelente jornal as saudações que essa redação dirigiu à exma.sra. Guedes Penteado e seus companheiros desta viagem pelo vale amazônico. Venho lhe trazer os nossos agradecimentos muito sinceros. E aproveito o momento para uma retificação. O seu jornal me deu como secretário particular de S.Excia. o dr. Washington Luiz quando presidente de S. Paulo. Não o fui e me apresso em retirar dos ombros essa benemerência. E o faço com a máxima liberdade pois que pelo já experimentei posso afirmar a desnecessidade de qualquer título para que um brasileiro seja recebido fraternalmente por este povo admirável do Pará. Certo de que esta retificação terá acolhida no seu jornal, sou do Sr. redator o mais grato dos patrícios. ─ MÁRIO DE ANDRADE.
Pouco importa destacar, no caso, a gentileza do secretário e a elegância irônica de seu estilo. Mais valerá, à base de tais esclarecimentos, adiantar que só a custo se acharia o autor do Carro da Miséria entre aqueles modernistas que, segundo Ledo Ivo, apoiaram abertamente a candidatura de Washington Luiz e Júlio Prestes, expoentes da República Velha. (5) Ou do contrário não se apressaria em retirar dos ombros a benemerência que, junto com o título de “Doutor” outorgara-lhe por distração o noticiarista de “O Estado”.
E aqui chegamos, enfim, ao que de mais relevante se publicou em Belém por ocasião da visita do poeta: as entrevistas (duas) que ele concedeu à imprensa no dia 24 de maio de 1927( 6 ). (6)Porque jogam alguma luz sobre a história daqueles anos, mas também porque nos descortinam certas atitudes estéticas do entrevistado, valeria a pena examiná-las de perto e encerrar com elas a nossa investigação.
Acha-se a primeira das entrevistas na página de abertura de hoje extinto e quase esquecido “Correio do Pará, órgão do Partido Republicano Federal, e de que eram redator-chefe Julião Ausier Bentes e diretor-gerente Miguel Pernambuco Filho. Sem fotografia, mas com amplo destaque, traz por título “O Movimento modernista no sul do país” , a que se seguem quatro subtítulos sem maior importância. No intróito, o repórter não economiza elogios ao “brilhante escritor paulista”, apresentando-o ao público do Pará em termos bem lisonjeiros: “O autor do “Losango Cáqui”, que na corrente intelectual modernista de São Paulo é um dos vultos mais representativos, possui, já, o seu nome firmado nas letras nacionais, não só pelo aspecto original e verdadeiramente brasileiro que procura imprimir a todas as suas produções como pela maneira simples e formosa como descreve a beleza em todas as suas manifestações”. Pelo visto, não escapara ao provinciano jornalista o frisson nouveau daquele grupo que ele próprio rotularia, na pergunta inicial da conversa, de “brilhante plêiade que em São Paulo se filia à corrente modernista”. Quanto à entrevista em si – a que Mário acedeu “gentilmente de uma forma bem cativante “ – começa com uma rápida sinopse do poeta sobre a “nova corrente que em São Paulo, progredindo sempre, conquistou uma situação bastante promissora”. Na origem de tudo o dedo agitador de Oswald e o eco do polêmico artigo “O meu poeta futurista”, de 1921, que Mário (ou o repórter) dá como sendo do ano anterior: “Em 1920 Oswaldo de Andrade, que sem ser meu parente é um dos meus melhores amigos, publicou em um dos jornais paulistas um artigo me apresentando ao meio literário, que causou verdadeiro escândalo, desses escândalos que em vez de deprimir, consagram“. Seguem-se alguns comentários, curtos ou por alto, sobre os modernistas mais em evidência no momento, além de Oswald: Guilherme de Almeida, Menotti del Pichia – “o que maior bagagem literária possui na corrente modernista em S. Paulo” – o “prosador elegante e simples” Plínio Salgado, o “ensaísta de mérito” Couto de Barros, e Cassiano Ricardo, “um dos mais belos representantes da poesia paulista”. Na prosa, prossegue, “a maior figura é Paulo Prado, que atualmente escreve o “Retrato do Brasil”, ensaio sobre a tristeza brasileira, que está fadado a um ruidoso sucesso de livraria”. Pertencerá a Alcântara Machado, no entanto, “o melhor livro que o modernismo produziu até hoje” (Mário referia-se a Braz, Bexiga e Barra Funda, definindo-o e “estudo crítico sobre o bairro ítalo-brasileiro”). Do movimento no Rio de Janeiro, declara o entrevistado: “Depois da cisão provocada por Graça Aranha a literatura da Capital Federal não sabe que caminho tomar. As figuras mais características são inegavelmente Manuel Bandeira e Ronald de Carvalho, que refletem aspectos inteiramente diferentes na poesia”. E depois de ver em Álvaro Moreyra “um grande espírito que atingiu uma expressão pessoal admirável”, e no Primeiro Caderno, de Oswald, “um livro interessantíssimo, de ´blagues´, que tem revolucionado o meio literário de S. Paulo”, o autor dos Namoros com a Medicina acrescenta, elogiando a revista Esthetica: “O movimento modernisante mais interessante que o Rio produziu, foi a publicação da revista “Esthetica” dirigida por Prudente de Moraes Netto e Sérgio Buarque de Hollanda”. De sua obra pessoal aparecida até então, Mário considera Amar, verbo intransitivo “o meu livro mais representativo”, da mesma forma por que os contos de Primeiro Andar constituíram “um tratado retrospectivo sobre a minha vida literária”. Encerra-se a conversa com louvações do visitante ao aspecto caracteristicamente brasileiro de Belém, e em particular do Largo da Sé, !verdadeiro encanto, uma verdadeira maravilha de architectura”.
A segunda entrevista deste dia 24 de maio de 1927 estampou-se a “Folha do Norte” na primeira página, conferindo-lhe o título pouco expressivo – mas comum no tempo – de “Uma palestra com um espírito culto” e ilustrando-a com um retratinho redondo do poeta. Contornemos, além do fecho, a introdução florida do entrevistador, onde Mário aparece, “em companhia da ilustre senhora Olívia Guedes Penteado”, emitindo “impressões e conceitos numa prosa flexuosa e amena” e envergando outra vez o seu título de Doutor... Vamos logo ao questionário daquele dia, conservando, como o fizemos até agora, a grafia daqueles tempos:
─ Está satisfeito com a viagem?
─ Enormemente. Meu avô Leite Moraes, quando governador da província de Goiás, carregando meu pai como secretário, veio de rodada pelo Araguaya até aportar aqui em Belém. Como se vê, tenho na tradição os passeios fluviais pelo Brasil.
─ E pretende ir longe?
─ Assim, assim. É um passeio sem heroísmo o que fazemos. Estão decididas duas viagens: Amazonas acima até Iquitos e Madeira acima até Guajará-Mirim. Provavelmente daremos um pulo à Bolívia e, tempo sobrando, subiremos o Rio Negro e, na volta, visitaremos Marajó.
─ E não se assustam com o desconfôrto?
─ Não haverá desconfôrto. Todos aqui têm sido incansáveis em nos facilitar viagens e passeios. Vivemos em plena lua de mel com este povo, estas águas e terras. Evidentemente não é a mesma coisa dar uma volta de auto até o Souza e sacolejar na poeira da Madeira Mamoré; porém o conforto é coisa relativa, provém muito mais da elasticidade do corpo. Ora, tanto a senhora Guedes Penteado e senhorinhas Nogueira e Amaral, como eu, estamos acostumados no esporte diário. Corpo disposto leva gente até o fim do mundo, sem pesar.
─ E que acha de Belém?
─ Nem me fale. É um dos encantos do Brasil. O Brasil possue algumas cidades bonitas: o Rio, Belo Horizonte, Recife, São Paulo; mas, a todas estas falta carácter. Belém é como Ouro Preto, como Joinville, como Salvador; possui beleza característica (sic). Este céu de mangueiras, filtrando sobre a gente, produz uma ambiência absolutamente original e lindíssima. Vejo com terror que em certas ruas estão plantando árvores estrangeiras.
─ Há o problema da humanidade a resolver...
─ Será um problema ou uma fatalidade climática? Aliás, a solução do problema não implica importação de árvores da “estranja”. Essa arvoreta bem educada que andam plantando é insuportavelmente monótona e estúpida como um pato. Imagine só uma alameda arborizada e com tufos de assahyzeiros? Seria adorável e vivaz como esses mameluquinhos que andam nus nas praias afastadas. Com as mangueiras, os barcos e velas coloridas, e tantos outros encantos originais, vocês têm um thesouro de belleza nas mãos. Aproveitado sem espírito de imitação, Belém será a mais linda cidade equatorial.
─ E a architectura?
─ O Teatro da Paz é bom. Nazaré é admirável no seu luxo, embora não seja nada brasileira. Em todo caso, antes ela que a Cathedaral gothica pavorosa que estão construindo em São Paulo. E há um lugar sublime, que é preciso preservar de qualquer modificação: o largo da Sé. Só mesmo a Praça de São Francisco, em São João d‟el Rei, é tão bella como o largo da Sé daqui. Nem na Bahia se encontra um conjunto tão harmonioso, tão equilibrado e sereno. É uma preciosidade.
Nas linhas e entrelinhas da conversa em causa – na qual, adianta-nos o repórter, Mário revelou “fluência de fino ´causeur´ – cintilam partículas múltiplas do ideário modernista, a começar pela viagem em si, empreendida menos como jornada de turismo do que como peregrinação cognoscitiva da Amazônia. É que o “inferno verde” de Alberto Rangel e de Euclides da Cunha já se transformara, muito antes de 1927, no território por excelência mítico do Modernismo, entendendo-se que o escritor que o desconhecesse, que o não tivesse “sentido” através da experiência direta, incorria de certa forma numa transgressão intelectual .(7) “Querem conhecer a Amazônia”, é a manchete a que por duas vezes recorre, falando dos recém-chegados visitantes paulistas. “O Estado do Pará”. E mais tarde , às vésperas de a comitiva regressar a S. Paulo depois do périplo do grande vale, do Solimões a Iquitos e do Acre até a Bolívia, o mesmo órgão escreverá, da “distinta senhora” Penteado, que “veio à Amazônia no interesse de conhecer este longínquo e rico torrão da federação brasileira, tão desconhecido e ridicularizado pela gente sulista” (20-7-1927). Assim, por trás do “passeio sem heroísmo” das declarações à “Folha do Norte”, ou da “bonitíssima duma viagem” da carta a Bandeira, percebe-se todo um programa modernista de (re)conhecimento da terra, integrado num plano mais vasto ainda de revalorização da cultura brasileira à luz de nossa história, dos nossos costumes, da autenticidade de nossas tradições – enfim, da “nossa coisa nacional”, conforme expressão do próprio Mário num trecho do O Empalhador de Passarinho (“Uma suave rudeza”, reedição conjunta da Martins e do Instituto Nacional do Livro, S. Paulo-Brasília, 1972, p. 66). Certo, muito modernista de destaque, em obediência a tal programa, foi cair direitinho na arapuca do exotismo. Quando não se entregou de corpo e alma cantando aos quatro ventos as grandezas do país, ao mais apaixonado gênero de ufanismo, o que levaria Carlos Drummond de Andrade a anotar, num poema de Brejo das Almas (1934), que o Brasil já estava farto de nós e queria repousar de nossos terríveis carinhos... (8) Mário evidentemente, resistiu à tentação, e disto há provas cabais na entrevista que seguimos comentando.
Na Belém de 1927, por exemplo, ele preferirá o autêntico ao exótico, o que explica se encantasse com o Largo da Sé – “lugar sublime”, “uma preciosidade” – e tachasse de “nada brasileira”, embora “admirável no seu luxo”, a extravagante e bigarrée Igreja de Nazaré. Em caso de dúvida, porém, ficaria com ela e não com a catedral gótica de S. Paulo, simplesmente pavorosa”. Em verdade, nenhum dos templos poderia jamais seduzir o poeta. Faltava-lhes, antes e acima de tudo aquele “caráter” que o viajante sentira pulsar em Ouro Preto, em Joinville, em Salvador, e que emprestava a Belém, por isso mesmo, a sua “beleza característica”. Neste contexto, e não no de um extremado nacionalismo, é que deveríamos entender o “terror” do visitante ao presenciar, na capital do Pará, a substituição das mangueiras por árvores “da estranja”. Ao contrário destas últimas, as mangueiras, originárias da Índia tropical, já se haviam integrado à história e à fisionomia de Belém, faziam parte de seu “caráter”, pelo que a ideia de eliminá-las deveria quedar fora de cogitação. Aqui, além do mais, demonstrava Mário de Andrade uma consciência ecológica perfeita, pois que nenhuma árvore européia substituiria em beleza e funcionalidade, sob o sol do equador, a mangueira frutífera e frondosa. E quando o poeta sonha com uma alameda de açaizeiros, não faz mais do que prenunciar os paraísos arbóreos de Burle Marx, em que planta, paisagem e homem, coexistindo em sensual harmonia, sugerem dentro do mundo tropical uma concepção hedênica da vida. Saliente-se, por fim, a preocupação – também modernista – de prescrever a saúde através da higiene física, que na conversa acima se reflete no comentário sobre a elasticidade do corpo, adquirida com a prática do esporte diário. Daqui se poderia partir, bem entendido, à apologia que da existência ao ar livre propuseram vários modernistas, bastando lembrar o caso do dinamismo vital e até animal de Graça Aranha, espécie de Metástase brasileira dos paroxismos dionisíacos de Nietzsche. De qualquer modo, não nos interessa no momento a presença de Nietzsche no Brasil, assunto ainda por estudar, senão a presença de Mário de Andrade no Pará, assinalada sobremaneira nas fontes que estivemos explorando.
Três dias depois das entrevistas acima, a comitiva Penteado – e com ela o poeta-secretário – deixou Belém no rumo de Iquitos e escalas, dando início a uma exploração da Amazônia que duraria exatamente um mês. Aos 28 de junho, acha-se o grupo de volta à capital do Pará, de onde retornaria a S. Paulo a 1º de agosto, a bordo do Baependy. As colunas sociais que se ocuparam do fato, e foram muitas, igualmente anunciavam o retorno ao sul, pelo mesmo barco, do escritor português Gastão de Bittencourt, o homem que em 1946 publicaria em Lisboa, dedicando-o a Câmara Cascudo e à memória de Mário de Andrade, falecido no ano anterior, o seu A Amazônia no fabulário e na arte. A inteligência do tempo, como se vê, andava de namoro firme com o inferno verde, berço de Macunaíma, herói de nossa gente.
(1) ANDRADE, Mário de, Cartas a Manuel Bandeira. Rio de Janeiro, Organização Simões Editora, Editora, 1958, pp161, 163-164.
(2) São Paulo, Edart-São Paulo Editora, 1971, p 28
(3) Nesta mesma carta – datada de “por esse mundo de águas VI-27” e escrita, de bordo, um dia antes da chegada a Manaus – Mário recordará com nostalgia as horas de Belém, cidade que a Paulo Duarte ele confessou (op.cit.p.139) ser a sua preferida, depois de Florença. Da capital guajarina relembrava em especial as comidas e bebidas, as chuvas e as mangueiras, o Grande Hotel e o Teatro da Paz, para acabar admitindo sem rebuço: “Porém Belém eu desejo com dor, desejo como se deseja sexualmente, palavra”. Enquanto depoimento das reações de Mário frente ao sortilégio da Amazônia, é carta de incomum interesse para o biográfo, não o sendo menos para o crítico de literatura, se considerarmos o que de “amazônico” o poeta injetou no Macunaíma, na crônica, obra de antologia, “Tacacá e Tucupi” (Os Filhos da Candinha) e em passos outros de sua obra. Também poderia servir de texto-gênese da “Moda do Alegre Porto” (p. 182 da citada correspondência a Bandeira), curiosíssimo poema sobre Belém do Pará, de que a peça mais famosa de Manuel Bandeira, versando o mesmo tema, será irmã siamesa.
(4) “Mário de Andrade, secretário de D. Olívia”, Suplemento Literário de O Estado de São Paulo, 16-1-1972. Dois anos antes em Macunaíma e a viagem grandota (S. Paulo, Quarto Artes Editora), o mesmo jornalista escrevia, da imprensa de Belém, não consultou os jornais paraenses de 1927. E nem as Cartas a Manuel Bandeira, onde Mário confessa (p 165) que, na Amazônia, passava “por homem ilustre e uma grande inteligência aí do sul”.
(5) Modernismo e Modernidade, Rio de Janeiro. Livraria São José, p.16
(6) Será oportuno recordar aqui, pois que se relaciona com a visita de Mário e de D. Olívia à Amazônia, o capítulo “A Rainha do Café”, do romance Safra, de Abguar Bastos (Rio de Janeiro, José Olympío Editora, 1937), todo ele uma sátira apimentada da aventura de 1927. Citamos apenas, como amostra, os dois parágrafos de abertura: “Uma vez chegou à Vila a Rainha do Café”. Vinha de São Paulo, terra do café, com vestidos deslumbrantes. Chamaram-na, respectivamente, no Maranhão: a “ilustre”, no Pará: a “inconfundível”, no Amazonas, a “insigne”Rainha do Café. Teotonio, que ia passando, viu tudo. A Rainha levava no séquito duas jovens sobrinhas e um secretário famoso, não por ser secretário, mas em virtude de ser autor de dois livros que haviam assustado, sobremodo, a arte nacional (p 176).
(7) Alguns dos motivos subjacentes à mitificação da Amazônia dentro do Modernismo, o leitor os encontrará trabalhados com mão de mestre por Wilson Martins, no capítulo “1931 COBRA NORATO” de A Literatura Brasileira, v. VI, O Modernismo, S. Paulo, Editora Cultrix, 1964.
(8) Trata-se de “Hino Nacional” de consulta obrigatória para um entendimento adequado de algumas das ideologias do Modernismo, entrevistas sob o raciocínio irônico do poeta.
domingo, 24 de abril de 2011
Um poema para refletir na Semana Santa
DESENGANOS DA VIDA HUMANA, METAFORICAMENTE
É a vaidade, Fábio, nesta vida,
Rosa, que da manhã lisonjeada,
Púrpuras mil, com ambição dourada,
Airosa rompe, arrasta presumida.
É planta, que de abril favorecida,
Por mares de soberba desatada,
Florida galeota empavesada,
Sulca ufana, navega destemida.
É nau enfim, que em breve ligeireza
Com presunção de Fênix generosa,
Galhardias apresta, alentos preza:
Mas ser planta, ser rosa, nau vistosa
De que importa, se aguarda sem defesa
Penha a nau, ferro a planta, tarde a rosa?
sábado, 22 de janeiro de 2011
DOIS ASPECTOS DO DISCURSO LITERÁRIO: "PLEBISCITO E FAMIGERADO"
Reitor:
Daniel Coelho de Souza
PRO-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
Pro-Reitor:
Ronaldo de Araújo
CONSELHO EDITORIAL:
Albeniza de Carvalho e Chaves
Adherbal Meira Mattos
Horácio Schneider
Geraldo de Assis Guimarães
Meirevaldo Jonair de Paiva - Gerente do PROEDI
Ronaldo de Araújo - Presidente
PROEDI/SESU/MEC
Bassalo, Celia Coelho
Dois Aspectos do Discurso Literário: "Plebiscito e Famigerado" - Belém, Universidade Federal do Pará, 1982
Editado em Convênio MEC/SESU/PROEDI
37 p.
1. Contos brasileiros - História e crítica
2. Azevedo,Artur, 1856-1908 -Plebiscito - Crítica e interpretação - 3. Guimarães Rosa, João, 1908-1967. Famigerado - Crítica e interpretação
CDD - 869.930109
CDU -869.0(81) - 34
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ PRO-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO.
DOIS ASPECTOS DO DISCURSO LITERÁRIO
"PLEBISCITO E FAMIGERADO"
Textos para Discussão/1
CELIA COELHO BASSALO
Profa Assistente do Centro de Letras e Artes da UFPA
BELÉM 1982
C) Copyright do autor
Capa: Metamorphosis Inventos Visuais Ltda.
Correspondência para o autor: Centro de Letras e Artes - UFPA Departamento de Língua e Literatura Vernáculas Campus Universitário - Guama
66.000 - Belém - Pará- Brasil
TEXTOS PARA DISCUSSÃO
"Parte-se do princípio de que o trabalho científico se inicia pela colocação de um tema em nível embrionário e pouco a pouco se desenvolve, a media que o pesquisador amadurece o seu raciocínio critico, amplia a sua base empírica de demonstração e recebe contribuição de sua comunidade acadêmica.”
"Définir positivament le récit, c'est accréditer, peut-être dangereusement. l'idée ou le sentiment que le récit va de soi, que rien n´est plus naturel que de raconter une histoire. . . "
GENETTE, Gerard. Figures II, Paris, du Seuil, 1969, p. 49.
À Albeniza de Carvalho e Chaves, amiga e mestra, que me inspirou o amor e o interesse pela Teoria Literária
SUMÁRIO
DEDICATÓRIA .................................................................... VII
SUMÁRIO ...................................................................... IX
RESUMO ...................................................................... XI
INTRODUÇÃO..................................................................... 10
Plebiscito ................................................................... 11
Famigerado.................................................................... 15
CONCLUSÃO .................................................................... 25
BIBLIOGRAFIA ................................................................. 37
ANEXO ....................................................................... 28
RESUMO
'Plebiscito e "Famigerado" - em linhas gerais uma análise plural de seus constituintes ficcionais, numa leitura comparativa e opositiva desses constituintes. Em prioridade, a observação de diferentes níveis - linguísticos, temporais e diegéticos desses contos, assim como a constatação das formas simples e complexas do ato narrativo.
ABSTRACT
'Plebiscito'' and 'Famigerado"are, in a general way, a plural analysis of their fiction constituents, in a comparative and oppositive reading of such constituents. Mainly, the different linguistic, temporal and narrative levels of these short stories, as well as their simple and complex forms in the narrative act, were observed.
1 INTRODUÇÃO
Cada vez mais se afirma a ideia de que a Literatura não é aquilo de que se fala, mas o modo como se fala. Essa ideia já a encontramos, e muito concretamente na antiguidade clássica, segundo se pode constatar do lão, de Platão:
Sócrates - Qual será, então, o motivo de só revelares essa habilidade com relação a Homero, e não com referência e Hesíodo ou a outro qualquer poeta? Não trata Homero dos mesmos assuntos que os demais poetas? Não é a guerra o seu terra principal, a relação dos homens entre si, tanto os bons como os maus, os homens comuns ou os governantes, a maneira por que os deuses conversam entre si e com os homens, o que se passa no céu ou no Hades, o nascimento dos deuses e dos heróis ? Não foi com esses temas que Homero compôs suas epopeias?
Ião – Tudo isso é muito certo.
III – Sócrates – E então? Os demais poetas não desenvolveram esses mesmos temas?
Ião – Desenvolveram, Sócrates; não porem, da mesma maneira que Homero.'`
Fundamentados nessa afirmativa platônica é que selecionamos dois contos, de autores e épocas diferentes, "Plebiscito" e "Famigerado", de Artur Azevedo e Guimarães Rosa, respectivamente, ambos tratando de matéria afim, de vez que neles se procura definir, em situação de discurso, uma palavra, porém, distanciando-se no piano da narrativa. Esse distanciamento 6 o que tentaremos mostrar, fazendo uma análise em separado de um e de outro textos. "Plebiscito" e "Famigerado" funcionarão como elementos de comparação mútua, aquele por apresentar um certo uso a linguagem que já nos habituáramos a ver, diferente, portanto, do que acontece com este. Em "Famigerado" temos a exata ideia de que o discurso literário é nutrido não por formas estereotipadas, mas pela transformação delas em significantes sempre
novos, os quais carreiam consigo uma vasta gama de significados constituídos na sua maioria de imprecisões, indeterminações, etc. Com isso, não queremos dizer que esses significados, mal determinados pela sua própria natureza, não estejam presos a um sistema coerente e nem deixem de constituir um código. Em "Plebiscito" encontra-se uma certa "racionalidade arbitrária (BARTHES, 1977) da linguagem, ao contrario de "Famigerado", o qual apresenta uma certa "irracionalidade" (BARTHES, 1977)
Nesta análise, procuraremos observar os constituintes ficcionais, formados unicamente pela linguagem narrativa, aqui responsável pelo substrato sobre o qual estão incluídos esses constituintes, formando um mundo autossuficiente, sustentado exclusivamente pelos valores constituídos por ela, linguagem. Alem disso, tentaremos averiguar como o texto funciona e o porquê desse funcionamento no que diz respeito à produção de efeitos estéticos, estilísticos e semiológicos.
PLEBISCITO
"Plebiscito" é um dos contos em prosa de Artur AZEVEDO (1977, p. 286), marcante, por seu tom humorístico, jocoso e ate mesmo satírico.
Esse conto gira em torno do significado do vocábulo plebiscito e tem inicio com uma pergunta formulada a esse respeito por um menino a seu pai. Este, comerciante burguês, não sabendo respondê-la e não querendo humilhar-se diante da família, para conservar, como ele próprio o diz, a força moral que deve ter em casa,
"Não digo para não me humilhar diante de meus filhos! Não dou o braço a torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa!"
procura através de dissimulações variadas, esconder a sua ignorância a respeito do significado da referida palavra. No entanto, pressionado por sua mulher (a qual, no conto, estabelece, por meio de sua conduta, a contrastação, com a final idade não de se opor totalmente ao senhor Rodrigues, mas como elemento fundamental para evidenciar, por sua vez, a conduta do marido) para explicar ao filho o tal significado, acaba exasperando-se e, nervosamente, sai da sala de jantar onde a família se encontrava reunida, dirigindo-se para o quarto de dormir. Ai encontra exatamente a única coisa de que necessitava - um dicionário, onde verifica furtivamente o que quer dizer plebiscito. Em seguida, para manter a harmonia familiar, os filhos e a mulher do protagonista resolvem chamá-lo para que venha sentar-se novamente a sala de onde saíra num ímpeto de cólera. Era só isso que o negociante esperava, para dogmaticamente expor a significa; ao do vocábulo, vocábulo esse que constitui o "pivot" da questão. Nessa altura da narrativa, nova e última cena "teatral" e montada. O narrador prepara o ambiente para que o senhor Rodrigues alivie as tensões dos outros personagens, de vez que as suas próprias já as aliviara, ao esclarecer-Ihes a significação do referido vocábulo. Tudo isso é relatado através de fatos sucessivos em que um é a consequência inevitável do outro, constituindo, por isso mesmo, aquilo que BURKE (1969, p. 128) chama progressão silogística.
Possuindo apenas uma célula dramática, "Plebiscito" é elaborado, de certa forma, sob os moldes tradicionais, obedecendo a uma estrutura sintática linear, cuja linguagem reflete os padrões clássicos e, por isso mesmo normativos, exigidos e observados pelo autor.
AZEVEDO (1977, p. 285) demonstrou não querer separar-se do palco e, nesse conto, dividido intencionalmente em quatro partes ou quatro atos, ressalta a colaboração buscada no teatro para elaborar o conto. A primeira parte, conforme se pode observar claramente, é, de certa forma, semelhante a uma indicação cênica:
"A cena passa-se em 1890. (. . .) Silêncio."
Essa aparente disposição cênica, vista não por um ângulo puramente teatral e sim literário, funciona como um prólogo, possuindo valor muito mais ontológico do que propriamente artístico. É certo que, com esse recurso, o autor de Contos fora de moda, utilizou o processo da economia verbal ao aproveitar esse mesmo prólogo para apresentar, de maneira sucinta, a sua cosmovisão romântica e patriarcal de uma pequena família burguesa, caracterizada aí, quase que unicamente, pela maneira pantagruélica de comer do senhor Rodrigues, "comer como um abade", detalhe mínimo, convencional, mas altamente identificador tanto do meio social, em que a família vivia quanto do aspecto caricatural atribuído pelo narrador ao protagonista, além de lhe conferir, a nosso ver, um caráter semi universalizante, de vez que representa, de certa forma, uma classe social complexa. Essa complexidade da classe social não lhe confere, no entanto, a possibilidade de torná-lo personagem redondo, de vez que ele não é capaz de surpreender o leitor de modo convincente. (FORSTER,.1969, p 61).
Os membros da família, em número de quatro (número máximo exigido pelo conto tradicional) serão os únicos personagens, todos eles participando ativamente do processo narrativo.
Ao dar-se início ao primeiro segmento, na movimentação indireta das figuras, é que se pode ver a transformação dessa cena estática, á qual nos referimos mais acima, num todo organizado e dinâmico, todo esse que constitui a linguagem literária. Queremos evidenciar que essa cena a qual chamamos estática e que está muito próxima de uma certa realidade ou verdade, quer pela sua clareza, quer pela sua objetividade, não está ligada a um referente
exterior a ela, por isso mesmo, determinado e preciso, mas, ao contrário, afasta-se cada vez mais dessa realidade ao constituir a sue própria, feita unicamente de palavras.
Empregando o discurso direto em quase todo o conto, o narrador apresenta os vários enunciados que aí aparecem, assinalados no plano formal por verbos declarativos, tais como: "perguntar", "chamar", "dizer", etc. . . Usando esse recurso, o autor consegue fazer com que os personagens, através da forma expressiva desse tipo de discurso, elevem-se das sues situações e tornem-se vivos e operantes diante do leitor-ouvinte.
Ao obedecer rigidamente os padrões tradicionais de estímulo, resposta imediata (recurso explorado aprioristicamente no texto de tempo cronológico) em todas as situações de caráter indagativo, o autor confere um maior dinamismo ao tempo da narrativa ao captar um flagrante sócio-burguês. Esse dinamismo aqui é reforçado também não só pela naturalidade elaborada da diegese, como pela combinação adequada do texto expositivo a fala dos personagens, preservando a indissociabilidade intuição-expressação de que fala Croce. ap. SILVA (1973, p. 218).
Outra vantagem da utilização desse discurso é que o leitor vê-se obrigado a participar diretamente da tessitura verbal da narrativa, de vez que, por uma espécie de magia, também verbal, ale, leitor, é colocado sem intervenções, diante dos personagens e, fortemente envolvido por eles tam a intenção de participar da ação. Com isso opera-se um vínculo maior entre ambos, ressaltando a influência exercida pelo teatro (gênero que, como se sabe, apoia-se nesse tipo de discurso) de vez que uma das características do público dramático é justamente o querer cooperar como a representação cênica dos personagens, como acontece no teatro dos dias atuais.*
Aqui e ali, AZEVEDO (1977, p 286) foge um pouco do
_____________
* Parece-nos oportuno salientar as ideias de Wellek e Warren com relação a "Literatura e as outras artes' : assinalam eles que "por vezes a literatura tom tentado por forma definida, alcançar os efeitos do pintura - tornar-se pintura com palavras -, ou atingir os efeitos do música - transforma-se em música. Em certas ocasiões, a poesia tentou mesmo tornar-se 'escultórica'. (. . .) Mais duvidosa é, porém, a questão de indagar se a poesia pode produzir os efeitos do música. . ." A posição desses estudiosos vale pare o caso em questão. Embora se possa afirmar que "Plebiscito" é uma pequena comédia burguesa por certas objetividades que apresenta, não estamos contudo, estabelecendo paralelo entre as duas artes: a literatura e o teatro, de vez que cada uma deles dispõe de recursos próprios, os quais lhes conferem plena autonomia. Daí concordamos com Wellek o Warren e podermos dizer que "Plebiscito" não pode ser considerado mais teatro que literatura, pelo fato de ele ser quase inteiramente dialogado e possuir uma indicação cênica entre outros recursos. WELLEK, René & WARREN, Austin, Teoria da literatura. Lisboa, Europa-América, 1962. p. 158-159.
tradicionalismo acima referido a que o conto estava vinculado como estrutura mais ou menos fixa. Deve-se isto ao fato de o autor utilizar o passado anterior ao episódio desenrolado no presente, como elemento de certa importância, de vez que não economiza, mas, ao contrário, alarga as fronteiras da narrativa, num elástico jogo temporal ao mencionar os acontecimentos precedentes,
"Já outro dia foi a mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou, falou, e o menino ficou sem saber."
para com isso conferir maior dinâmica a sua narração
Não obstante o autor haver atribuído relevância a um episódio passado, o mesmo não acontece com relação ao espaço em que a ação é desenvolvida. Esta transcorre unicamente numa sala de jantar, lugar escolhido para que seja evidenciado o cl ímax da narrativa.
O outro aposento mencionado, isto é, o quarto de dormir, assume o lugar não só de "porto seguro" para o senhor Rodrigues, como desempenha uma espécie de função catártica em que todas as tensões sofridas por esse mesmo senhor aí terminam, ao lhe serem restituídas a paz e a calma interior de que naquele momento tanto necessitara. Nesse ultimo aposento havia o remédio miraculoso para os seus males, não as "gotas de flor de laranjeira, mas um dicionário. . ."
Nesse segundo aposento o autor não consegue obter igual intensidade dramática oferecida pelo ambiente anterior. Para nós, o conto de Artur de Azevedo deveria ter aí, sua conclusão, pois assim guardaria o caráter de surpresa tão característico desse tipo de composição, tal como acontece, aliás, com as adivinhações.
A nosso ver, AZEVEDO, como narrador onisciente, não necessitaria do personagem da menina. Esta funciona como um elemento desnecessário, estranho ao texto, amorfo, uma espécie de deus ex-machina, introduzido apenas para "salvar" o senhor Rodrigues da humilhação a que estava condenado a sofrer, e dar uma solução favorável ao angustiante e insolúvel problema pessoal do referido senhor. O conto em si não reclama tal inclusão, de vez que a sua unidade de ação já estava completa, isto é, a convergência de todos os dados necessários para que houvesse núcleo dramático achava-se plenamente configurada. A expansão do texto enfraquece, daí por diante, a narrativa, e o leitor de "Plebiscito" ao presenciar sair do quarto o protagonista já antevê o que vai acontecer ate o final da estória. Isso vem quebrar uma das regras do código retórico, a de que o leitor não pode a priori, saber o que vai acontecer, mas à medida que o discurso se desenrola é que as regras surgidas com e na obra vão-se re-velando, conforme as exigências do próprio código literário. Dai porque discordamos de MONTELLO (1956, p. 41) quando afirma este que Artur Azevedo "sem uma palavra demais, com os movimentos da pequena comédia perfeitamente encadeados termina o conto da melhor forma teatral". A nosso ver, o segundo e o terceiro segmentos, olhando-se do ponto de vista da narrativa, constituem elementos pouco relevantes.
Com a distensão do texto, o movimento rítmico que vinha acompanhando a narrativa, num processo gradativo, em que a maior precipitação é marcada pela saída brusca do protagonista, cai e passa a fazer com que esses dois últimos segmentos fluam lenta e monotonamente.
Quanto ao tempo, a narrativa se apresenta presa ao movimento cronológico, objetivo, chegando mesmo a precisão de marcar o ano em que a cena se passou - 1890. Isto evidencia a rigidez estabelecida convencionalmente pelo homem para controlar o seu relacionamento com os demais membros da comunidade em que vive. Os momentos "angustiantes" vividos pelo senhor Rodrigues não chegam a constituir desacordo entre o tempo cronológico e o espiritual e as suas aflições não representam, em nenhum instante, sofrimento interior propriamente dito. Em "Plebiscito" não há choque entre esses dois tempos, daí a narrativa discorrer normalmente e sem alterações de qualquer natureza, de vez que os personagens do conto são seres destituídos de profundidade psicológica, possuindo apenas o "eu artificial" de que nos fala BERGSON, (1959, p. 1258).
FAMIGERADO
Famigerado o segundo conto dos vinte e um que compõem Primeiras estórias se articula em torno da definição do vocábulo que o denomina.
Possui apenas dois interlocutores, o jagunço Damásio, conhecido por suas estórias como homem feroz e perigosíssimo e alguém destituído intencionalmente de nome, mas que retratado pela narrativa poderá ser um boticário, morador da região em que se passa o "evento".
Damásio, acompanhado de mais três homens a cavalo veio da Serra (?), à procura desse boticário, para interrogá-lo a respeito do significado do vocábulo famigerado, que, para ele, jagunço, parecia ser "nome de ofensa", e lhe fora atribuído por um "moço do Governo".
Obtida a resposta, diferente da esperada, e presa unicamente a oralidade dos tratos, em que a honra toma papel relevante, e os documentos valem menos que a palavra empenhada e a promessa ou compromisso vale por um sinal (MOREIRA, 1959, p. 43), o "brabo sertanejo" despediu seus três acompanhantes, vindos apenas para testemunhar a explicação fornecida pelo homem instruído, e partiu de volta no seu alazão, após haver agradecido e apertado a mão de quem lhe tirara a indecisão do foro íntimo.
Embora breve, esse discurso não é desenvolvido no espírito como um simples fato pretérito e consumado; vai mais além, de vez que o diálogo estabelecido entre os dois personagens traz consigo a revelação psicológica de duas criaturas. Daí por que, nessa pequena estória, aparentemente simples, o narrador mergulha no âmago da linguagem, procurando proustiana e/ou bergsonianamente as camadas localizadas além do domínio consciente, a fim de precisar e registrar os elementos conflitantes e decorrentes da ausência de equilíbrio entre os dois tempos: o cronológico e o psicológico. Isso vem evidenciar a interioridade do enredo, aqui não encarado como a simples sucessão de fatos encadeados entre si, mas como a tentativa, por parte do narrador-protagonista, de querer exteriorizar e transmitir a realidade vista como um todo, de vez que os elementos que constituem o mundo e a obra, emergem violentamente no espaço-tempo, tal como são por ele percebidos, ;to é, a um só tempo, a um só instante, conduzindo assim o leitor a um estado de espírito ao qual outro estado de espírito pode adequadamente seguir-se, constituindo não uma progressão silogística, mas uma progressão qualitativa (BURKE,1969, p 128-9).
Embora curta, a estória, conforme nos referimos no início, contém profundidade psicológica, ressaltada, sobretudo, pela complexidade comportamental do narrador-protagonista e revelada por meio da motivação dos signos linguísticos. Esses signos trazem em si uma simbologia própria (pois o pensamento ao elaborar formas não tem alcance geral), representada na e pela linguagem, tomada esta, obviamente, como único suporte do discurso narrativo.
A complexidade da narrativa obedece a uma ordem gradativa e, conforme se pode observar desde o inicio, "Famigerado" filia-se, também, ao mundo folclórico, ligado a certas raízes míticas dos contos sertanejos, nos quais as estórias dos jagunços, inspirando violência, medo, conferem a eles um certo caráter que o vinculam a essas raízes.
"Foi de incerta feita - o evento. (. . .) Eu estava em casa, o arraial sendo de todo tranquilo. Parou-me à porta o tropel. Cheguei a janela. . ." (ROSA, 1967, p. 9)
O narrador poderia substituir o primeiro sintagma pela seguinte estrutura: "Era uma vez. . ." e, com essa técnica simples, despertar o leitor, motivado, agora, pela curiosidade que lhe é inerente, para seguir o caminho traçado pela própria linguagem e tecido pelo próprio texto.
Não obstante afirmarmos que o conto esteja vinculado as raízes míticas do sertão, encarado este como o repositório e persistência de tradições, não queremos dizer, com isto, que se trata de um conto tipicamente nativo, próprio, autóctone, pois esse tipo de conto é cada vez mais raro de ser encontrado. O que existe, e talvez este seja um dos casos, é a miscigenação de uma grande variedade de estórias sobre o sertão que se combinam entre si para formar nova trama, cuja solução vai depender do use intencional da linguagem, cada vez mais simbólica, ligada a fonte quase sempre longínquas e muitas vezes perdidas no espaço-tempo.
Apoiados nisso é que se pode ver na estória do jagunço ou no jagunço com suas estórias um tipo universal, complexo, não pertencente a um sertão determinado, mas ao mundo sertanejo, mundo esse que explode, se amplia e se expande através do e no discurso narrativo, como se este pudesse corresponder a uma supernova*; estrela que explica a origem do universo.
Nesse conto, com base na dicotomia jagunço-boticário, Guimarães Rosa como narrador onisciente, procura, por meio de um ato da consciência e não de uma simples ação voluntária, penetrar na essência da linguagem ao tratá-la de feição especial, particular, transgredindo a rejeitando o código linguístico, isto é, as normas e regras impostas e pontificadas pela gramática normativa, e procura também renovar e elaborar a sua própria linguagem, sem, contudo, alterar a função primordial do texto, a qual estabelece o relacionamento e daí a comunicação entre os homens. Para isso apóia-se não numa realidade objetiva, cujo referente exterior está preso a heteronomia da linguagem denotativa, monossignificativa, etc., mas na autonomia do discurso literário, conotativo, plurissignificativo e, além disso auto-referencial; cria dois tipos, em que um representa a oposição linguística do outro. Nessa oposição, dois níveis de linguagem, duas concepções do mundo e duas psicologias fazem-se ressaltar. Essas linguagens trazem consigo a opacidade e a transparência de que falam Todorov e Lefebve, ora fazendo o leitor perceber
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*Aproveitamos aqui, para explicar, de maneira sucinta que é Supernova é uma estrela que se condensou e num determinado momento explodiu; seus fragmentos espalharam-se em todo o universo. Este, por sue vez, é formado de várias galáxias e estas formadas de várias estrelas, algumas delas com um sistema planetário. Um determinado planeta desse sistema complexo receberá e informação da explosão. A ciência auto-questiona-se e responde afirmativamente: Essa pequena informação será suficiente para explicar e totalidade de supernova? - Sim. (STRUVE, Otto. A evolução dos estrelas. In: A nova astronomia. S.Paulo, Scientific American. IBRASA, 1959, p 134)
o próprio discurso e não somente a sua significação, ora propondo para linguagem literária, a presentificação das coisas descritas e não o próprio discurso.*
É com essa segunda acepção que o leitor tem a impressão de ultrapassar o âmbito da linguagem e defrontar-se com a própria vida cotidiana, colocando-se em face ao referente, onde o domínio e o mecanismo da percepção tomam o lugar prioritário que lhes é inerente e preso, portanto, ao objeto existente, concreto, etc., diferente, do mecanismo da imaginação que conforme se sabe, liga-se ao objeto possível.
Justamente partindo desses dois mecanismos é que se pode constatar e afirmar serem os objetos evocados no texto, ("arma", "chapéu", "sela", "cinturão", "jereba" etc.); a descrição total da cena surpreendida pela ótica do boticário; a atitude em si e em conjunto dos dois personagens operantes bem como as situações nas quais elas se embricam, a configuração do que se convencionou chamar nível diegético. É nesse nível que aflora o desequilíbrio linguístico-temporal de que falamos anteriormente. Vejamos, pois, de maneira isolada, o ponto de partida desse desequilíbrio.
Reproduziremos, inicialmente, por nós agrupadas as falas do jagunço, isto é, o uso individual que Dámasio-personagem, como falante, faz do sistema linguístico, combinando as várias possibilidades do código da língua, as quais lhe permitem a exteriorização de seu pensamento, para, em seguida, reproduzirmos nos mesmos moldes a fala do narrador-protagonista.
Ao retratarmos essas duas falas, assim encadeadas, em que a do narrador protagonista assume um caráter mais descritivo, vale salientar que elas constituem, em si, uma unidade ou como quer Aristóteles na Poética, um todo, de vez que ambas possuem aquilo que o filósofo admitia para constituir-se uma fábula: princípio, meio, fim. (ARISTOTELES, 1964, cap. 7, p. 274)
2 - "Eu vim preguntar a vosmecê uma opinião sua explicada.. .
4 - Vosmecê é que não me conhece. Damasio, dos Siqueiras... Estou vindo da Serra...
6 - Saiba vosmecê que, na Serra, por o ultimamente, se compareceu um moço do Governo, rapaz meio estrondoso.. . Saiba que estou com ele à revelia ... Cá eu não quero questão com o Governo, não estou em saúde nem idade... O rapaz, muitos acham que ele é de seu tanto esmiolado...
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Apud. LEFEBVE, Maurice-Jean. Estrutura do discurso da poesia e da narrativa. Coimbra, Almedina, 1975. p. 44.
Sobre opacidade vela-se também Ensaios Críticos, citado na bibliografia.
8 - Vosmece agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é fasmisgerado. . . faz-megerado.. . Falmisgeraldo.. . familhasgerado...?
10 - Saiba vosmecê que saí ind'hoje da Serra, que vim, sem parar, essas seis léguas, expresso direto pra mor de lhe preguntar a pregunta, pelo claro...
12 - Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém ciente, nem tem o legítimo - o livro que aprende as palavras... E gente pra informação torta, por se fingirem de menos ignorância... Só se o padre, no São Ão, capaz, mas com padres não me dou eles logo engambelam... A bem. Agora, se me faz mercê, vosmecê me fale, no pau da peroba, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já lhe preguntei?
14 - Sim senhor...
16 - Vosmecê declare. Estes of são de nada não. São da Serra. Só vieram comigo, pra testemunho...
18 - Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender. Mais me diga: é desaforado? É caçoável? E de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?
20 - Pois.. . e o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?
22 - Vosmecê agarante, pra a paz das mães, mão na Escritura?
24 - Ah, bem!...
26 - Vocês podem ir, compadres. Vocês escutaram bem a boa descrição...
28 - Não há como que as grandezas machas duma pessoa instruída!
30 - Sei lá, às vezes o melhor mesmo pra esse moço do Governo, era i-se embora, sei não...
32 - A gente tem cada cisma de dúvida boba, dessas desconfianças... Só pra azedar a mandioca ... (ROSA, 1967, p 10-13)
Se tomados isoladamente, conforme o fizemos, cada um dos dois discursos configurar-se-á de maneira diversa. Este do jagunço, por exemplo, corresponde a um simples desenrolar progressivo, em que não há preâmbulos nem digressões de qualquer natureza. O que se observa nele é um equilíbrio entre o pensar e o dizer do sertanejo, em que os fatos se sucedem uns aos outros sem maiores alterações. Esses fatos podem mesmo até ser cronometrados, de vez
que a superposição dos três tempos, o da aventura, o da escritura e o da leitura, estudados por Michel Butor (BUTOR, 1975, p. 118) não constituem problemas de ordem técnica por parte do autor.
0 tempo da aventura, sob o ponto de vista do jagunço, flui normalmente (com uma pequena alteração durante o percurso de seis léguas) e, os elementos básicos componentes da essência de qualquer narrativa simples, clara, objetiva, de natureza literária ou não, tais como: o quê, quem, quando, onde, porquê, por isso, são aí colocados pelo autor e respondidos sem dificuldades pelo leitor, sem nenhuma objeção por parte daquele, a fim de não quebrar a linearidade, a rapidez e a brevidade do discurso do velho, cansado, mas valente sertanejo.
0 mesmo acontece com relação ao tempo da escritura, pois ainda hoje estamos impregnados do espírito da época em que viveram os jagunços, ou seja, o inicio do nosso século, onde tudo ainda nos parece natural e coerente. Esse não distanciamento temporal conduz o leitor a uma não dissociação da já decadente época da história sertaneja. Com isso, não haverá desajuste por parte do leitor que sentirá e compreenderá, na sua totalidade, o monólogo ou a estória de Damásio.
A harmonia entre os dois primeiros tempos reflete, com efeito, o comportamento e as condições sociais em que viveu esse tipo de homem. Assim sendo, compreende-se que o vocabulário usado por esse personagem seja muito reduzido, haja vista, o desconhecimento integral da semântica do vocábulo famigerado, que para ele significava apenas "desaforado", "caçoável", "arrenegar", "farsância" e finalmente "nome de ofensa". Como se vê, o seu conhecimento não estava desligado de uma certa verdade, pois os malfeitores também eram assim denominados. 0 importante a notar em tudo isso é que no conto a semi-ignorância do termo marca o inicio, o ponto de partida, embora superficial, dos "conflitos" desse personagem.
"A gente tem cada cisma de dúvida boba, dessas desconfianças. . . Só pra azedar a mandioca. . ."(ROSA, 1967, p. 13).
Diante do exposto, pode-se pensar em estabelecer uma diferença entre o ser do homem do sertão e o ser do homem do litoral. Damásio representa, pois, a ignorância, o reflexo de uma acracia e finalmente o espírito talionístico, (M0REIRA, 1959, p. 42) três elementos que contribuem de maneira decisiva para a formação da psicologia do sertanejo em particular e do sertanejo em geral, os quais diferem e mesmo opõem-se a maneira de ser do homem litorâneo.
Damásio é a configuração desse especial modo de ser, plasmado pela linguagem.
1 - Foi de incerta feita - o evento. Quem pode esperar coisa tão sem pds nem cabeça? Eu estava em casa, o arraial sendo de todo tranquilo. Parou-me à porta o tropel. Cheguei à janela.
Um grupo de cavaleiros. Isto é, vendo melhor: um cavaleiro rente, frente d minha porta, equiparado, exato; e, embolados, de banda, três homens a cavalo. Tudo, num relance, insolitíssimo. Tomei-me nos nervos. O cavaleiro êsse-o oh-homem-oh- com cara de nenhum amigo. Sei o que é influência de fisionomia. Saíra e viera, aquele homem, para morrer em guerra. Saudou-me seco, curto pesadamente. Seu cavalo era alto, um alazão; bem arreado, ferrado, suado. E concebi grande dúvida.
Nenhum se apeava. Os outros, tristes três, mal me haviam olhado, nem olhassem para nada. Semelhavam a gente receosa, tropa desbaratada, sopitados, constrangidos-coagidos, sim. Isso por isso, o que o cavaleiro solerte tinha o ar de regê-los: a meio gesto, desprezivo, intimara-os de pegarem o lugar onde agora se encostavam. Dado que a frente da minha casa reentrava, metros, da linha da rua, e dos dois lados avançava a cerca, formava-se ali um encantoável, espécie de resguardo. Valendo-se do que, o homem obrigara os outros ao ponto donde seriam menos vistos, enquanto barrava-lhes qualquer fuga; sem contar que, unidos assim, os cavalos se apertando, não dispunham de rápida mobilidade. Tudo enxergara, tomando ganho da topografia. Os três seriam seus prisioneiros, não seus sequazes. Aquele homem, para proceder da forma, só podia ser um brabo sertanejo, jagunço ate na escuma do bofe. Senti que não me ficava útil dar cara amena, mostras de temeroso. Eu não tinha arma ao alcance. Tivesse, também, não adiantava. Com um pingo no i, ele me dissolvia. O medo é a extrema ignorância em momento muito agudo. O medo O. O medo me miava. Convidei-o a desmontar, a entrar.
Disse de não, conquanto os costumes. Conservava-se de chapéu. Via-se que passara a descansar na sela, decerto relaxava o corpo para dar-se mais à ingente tarefa de pensar. Perguntei: respondeu-me que não estava doente, nem vindo à receita ou consulta. Sua voz se espaçava, querendo-se calma; a fala de gente de mais longe, talvez são franciscano. Sei desse tipo de valentão que nada alardeia, sem farroma. Mas avessado, estranhão, perverso brusco, podendo desfechar com algo, de repente, por um és-não-és. Muito de macio, mentalmente, comecei a me organizar. Ele falou:
3 - Carregara a celha. Causava outra inquietude, sua farrusca, a catadura de canibal. Desfranziu-se, porém, quase que sorriu. Daí, desceu do cavalo; maneiro, imprevisto. Se por se cumprir do maior valor de melhores modos; por esperteza? Reteve no pulso a ponta do cabresto, o alazão era para paz. O chapéu sempre na cabeça. Um alarve. Mais os ínvios olhos. E ele era para muito. Seria de ver-se: estava em armas -e de armas alimpadas. Dava para se sentir o peso da de fogo, no cinturão, que usado baixo, para ela estar-se j ao nível justo, alemão, tanto que ele se persistia de braço direito pendido, pronto meneável. Sendo a sela, de notar-se, uma jereba papuda urucuiana, pouco de se achar, na região, pelo menos de tão boa feitura. Tudo de gente brava. Aquele propunha sangue, em suas tenções. Pequeno, mas duro, grossudo, todo em tronco de árvore. Sua máxima violência podia ser para cada momento. Tivesse aceitado de entrar e um café, calmava-me. Assim, porem, banda de fora, sem a-graças de hóspede nem surdez de paredes, tinha para um se inquietar, sem medida e sem certeza.
5 - Sobressalto. Damázio, quem dele não ouvira? O feroz de estórias de léguas, com dezenas de carregadas mortes, homem perigosíssimo. Constando também, se verdade, que de para uns anos ele se serenara -evitava o de evitar. Fie-se, porém, quem, em tais tréguas o pantera? Ali, antenasal, de mim a palmo! Continuava:
7 - Com arranco, calou-se. Como arrependido de ter começado assim, de evidente. Contra que aí estava com o fígado em más margens; pensava, pensava. Cabismeditado. Do que, se resolveu. Levantou as feições. Se e que se riu: aquela crueldade de dentes. Encarar, não me encarava, só se fito à meia esguelha. Latejava-lhe um orgulho indeciso. Redigiu seu monologar.
O que frouxo falava: de outras, diversas pessoas e coisas, da Serra, do São Ão, travados assuntos, insequentes, como dificultação. A conversa era para teias de aranha. Eu tinha de entender-lhe as mínimas entonações, seguir seus propósitos e silêncio. Assim no fechar-se com o jogo, sonso, no me iludir, ele enigmava. E, pá:
9 - Disse, de golpe, trazia entre dentes aquela frase. Soara com riso seco. Mas, o gesto, que se seguiu, imperava-se de toda a rudez primitiva, de sua presença dilatada. Detinha minha resposta, não queria que eu a desse de imediato. E já aí outro susto vertiginoso suspendia-me: alguém podia ter feito intriga, invencionice de atribuir-me a palavra de ofensa àquele homem: que muito, pois, que aqui ele se famanasse, vindo para exigir-me, rosto a rosto, o fatal, a vexatória satisfação?
11 - Se sério, se era. Transiu-se-me.
13 - Se simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esses trizes:
- Famigerado?
15 - e, alto, repetiu, vezes, o termo, enfim nos vermelhões da raiva, sua voz fora de foco. E já me olhava, interpelador, intimativo apertava-me. Tinha eu que descobrir a cara. –Famigerado? Habitei preâmbulos. Bem que eu me carecia noutro ínterim, em indúcias. Como por socorro, espiei os três outros, em seus cavalos, intugidos até então, rnumumudos. Mas, Damázio.
17 Só tinha de desentalar-me. O homem queria estrito o caroço: o veri rérbio.
- Famigerado é inóxio, de "célebre" ", "notório" ", "notável ". . .
19 - Vilta nenhuma, nenhum doesto. São expressões neutras, de outros usos. . .
21 - Famigerado? Bem. E: "importante" , que merece louvor, respeito...
23 - Se certo! Era para se empenhar a barba. Do que o diabo, então eu sincero disse:
- Olhe: eu, como o sr. me vi, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora destas era ser famigerado – bem famigerado, o mais que pudesse!. . .
25 - soltou, exultante.
Saltando na sela, ele se levantou de molas. Subiu em si, desagravava-se, num desafogaréu. Sorriu-se, outro. Satisfez aqueles três: -
27 - e eles prestes se partiram. Só ai se chegou, beirando-me a janela, aceitava um copo d´água. Disse: -
29 - Seja que de novo, por um mero, se torvava? Disse: -
31 - Mas mais sorriu, apagara-se-lhe a inquietação. Disse: -
33 - Agradeceu, quis me apertar a mão. Outra vez, aceitaria de entrar em minha casa. Oh', pois. Esporou, foi-se, o alazão, não pensava no que o trouxera, tese para alto rir, e mais, o famoso assunto.
Por outro lado, a fala do narrador-protagonista apresenta complexidade, justificada não só em oposição aos três elementos acima referidos, mas por uma sucessão, ora crescente, ora decrescente, de estados de espírito.
Essa última complexidade ressalta, sobremaneira, o desequilíbrio temporal e espiritual revelado, desde o início do conto, desequilíbrio que tem como ponto de partida o olhar lançado por esse personagem a chegada do tropel ao tranquilo arraial. Esse arraial e o espaço exterior onde se desenrolará a ação.
"Eu estava em casa, o arraial sendo de todo tranquilo. Parou-me à porta o tropel. Cheguei á janela (...) Dado que a frente de minha casa reentrava, metros, da linha da rua, e dos dois lados avançava a cerca, formava-se ali o encantoável, espécie de resguardo." (ROSA, 1967, p. 9)
de vez que, do espaço interior, isto e, dentro da casa do narrador-protagonista, nada e mencionado no conto.
Enfatizamos intencionalmente o olhar, pois este e sumamente importante e serve para modificar a aglomeração das coisas reveladas subjetivamente. Com isso, não queremos dizer que o eu do texto esteja ligado ao eu biográfico, social, ou especificamente determinado. Na estrutura narrativa, ele funciona apenas como uma imagem metafórica do ser interior no dizer de Lefebve. (LEFEBVE, 1975, p 46)
No texto, o ver e o visto desempenham papel relevante ao evidenciarem violentas reações nervosas (emoção-choque) organicamente extensivas, reações essas que se desenvolvem em cadeia, sofridas pelo narrador-protagonista (que da sua janela "tudo enxergara, tomando ganho da topografia'") e estimuladas pela presença física do próprio jagunço. Daí podermos inferir que os sintagmas:
"Tomei-me nos nervos."(...)
"Senti que não ficava útil dar cara amena, mostras de temoroso. (...) "" O medo O. O medo me miava."(...)
"Sobressalto. Damásio, quem dele não ouvira? O feroz de estórias de léguas, com dezenas de carregadas mortes, homem perigosíssimo."(... )
"E já aí outro susto vertiginoso suspendia-me. . ."(ROSA, 1967, p, 9-11)
transformaram o ver num receber, portanto, em algo ativo, operante, capaz de modificar esses mesmos sintagmas em reações gradativas facilmente depreendidas de apreensão, temor, medo, pavor e finalmente vertigem. Essas reações, embora situadas no nível da consciência que antecede a fala, momento da não articulação e do não pronunciamento, são perfeitamente coerentes com o desenrolar dos acontecimentos.
Assim sendo, essas manifestações passam a constituir imagens não por se apresentarem de maneira simultânea, como jogo verbal, em que as peças, isto e, as palavras, são distribuídas de maneira precisa, justa, umas não podendo ser substituídas por outras sem que haja perda significativa para o discurso do narrador-protagonista. Por outro lado, essas imagens oferecem uma larga abertura à série ilimitada de significações que acarretam. Portanto, o que se observa no texto é uma certa realidade entrando em tensão com o imaginário, para criar, em seguida, outra realidade ou outro nível diegético que, por sue vez, revelará e transmitirá outras significações e com elas novas tensões.
Retornando ao pensamento de Butor em que o tempo da escritura vai frequentemente refletir-se na aventura por intermédio do narrador, surge, como ele próprio enfatiza, o problema de uma progressão de rapidez entre esses diferentes escoamentos (BUTOR, 1975, p 118). Isso é o que se observa no tempo da aventura em relação narrador-protagonista. Esse tempo é marcado por aquilo que Bergson entende por durée.*
No momento em que o narrador-protagonista, principalmente no seu solilóquio, expressa as emoções por ele sofridas, o que se faz presente e pertinente é um recordar ligado a etimologia da palavra, do latim "cor-cordis", isto é, "de novo ao coração". Ao recontar a estória ele não o faz guardando o distanciamento temporal que o início do conto registra e que a própria estrutura narrativa reclama,
"Foi de incerta feita -o evento." (ROSA, 1967, p. 9)
mas reproduz o passado, revivendo-o intensamente. É oportuno
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* BERGSON, Henri. 1959.Oeuvres. Paris, Presses Universitaires de France, p. 1315. Esse tempo, a durée dos estados interiores corresponde pare Bergson a matéria da intuitação metafísica: a apreensão do objeto no que ele tern de essencial e de próprio (atingindo, portanto, o absoluto) e que só é conseguido, não por meio da tessitura de abstrações, mas por uma submersão pare além da tessitura simbólica da linguagem, lugar em que repousa a intimidade do real concreto. Pare Bergson, a duração interior é a vida continua da memória que prolongs o passado indestrutível no presente.
salientar que essa recuperação do passado, adquire, a nossa ver, maior carga tanto expressiva quanto significativa, com o isolamento das falas de seu contexto e o posterior agrupamento delas, constituindo, assim, núcleos independentes, permitindo, pois, uma abertura maior ao texto. Essa abertura causa no leitor um constante "suspense", já causado anteriormente, no próprio narrador-protagonista.
Por outro lado, com a finalidade de reforçar o que acima expusemos, apoiamo-nos na segunda função diegética da descrição estudada por Gérad Genette, a de ordem por vezes, explicativa e simbólica, em que os retratos físicos, as descrições do vestuário, etc., tendem a revelar e ao mesmo tempo justificar a psicologia dos personagens, de que são, não raro, signo, causa e efeito. (GENETTE, 1969, p 58-59)
No início deste estudo estabelecemos uma correspondência entre o discurso narrativo (mas que pode se estender a qualquer tipo de discurso) e uma supernova. O que pretendemos, agora, é ratificar essa correspondência fundamentados em "Famigerado" que, como texto artístico, ambíguo por sua própria natureza, permite ao leitor, a cada instante, receber uma pequena informação de sua totalidade, mas que se desdobra à medida que o discurso se torna complexo, diferente, portanto,do texto científico, cuja informação tem caráter universalizante.
A nosso ver, o processo poético da concepção desse texto, em que se faz presente a complexidade de todo o sistema linguístico, explode em duas novas informações que, justapostas formam uma terceira - "Famigerado".
Portanto:
Discurso do jagunço + Discurso do boticário = "Famigerado"
Dentro desse esquema, "Famigerado" seria um fragmento constituído de mútiplos e variados significantes, os quais carreiam consigo sempre novos significados. Isso, porém, não revela e nem revelará a totalidade do texto, como o recebimento de um fragmento não explica, ate o momento atual, a totalidade da supernova.
2 CONCLUSÃO
Conforme tivemos ocasião de demonstrar, nosso estudo dos dois contos "Plebiscito" e "Famigerado" não se prendeu a um modelo único de leitura. O que pretendemos evidenciar, basicamente,foi a articulação deles, procurando, no entanto, desenvolver alguns pontos ligados a seus constituintes ficcionais, ao salientar ser a narrativa de Artur Azevedo construída dentro de uma ordem geral mais simples e, por isso mesmo, mais linear, destituída, portanto, de cortes espácio-temporais. Tal destituição implica uma estabilidade e estaticidade do foco narrativo, preso a um sistema convencional de contar e permitindo, assim, uma leitura predominantemente sintagmática do texto.
O mesmo não ocorre com relação a "Famigerado", que apresenta não só uma certa linearidade (fala do jagunço), mas também uma verticalidade textual (fala do boticário), decorrentes da exploração, por parte de Guimarães Rosa, dos cortes espácio-temporais. Com isso, a leitura desse conto torna-se, prioritariamente, paradigmática, possibilitando, pois, uma exploração maior das camadas mais profundas e simbólicas da linguagem.
"Plebiscito" e "Famigerado' evidenciam o que se convencionou chamar, atualmente, conto estruturado e conto desestruturado. No entanto, sabemos que em toda desestruturação está implícita uma estruturação que lhe e própria e, nada melhor do que este conto de Guimarães Rosa para justificar o que por último afirmamos.
Feita essa pequena explanação, tentaremos por meio de um gráfico, ilustrar o distanciamento existente entre ambos no plano da narrativa, conforme verificamos durante a leitura analítica que deles fizemos. Partem ambos de um mesmo ponto comum - a definição de um vocábulo, e a resposta dada, representa uma das múltiplas e diversas respostas aos questionamentos que a linguagem faz a ela própria.

Plebiscito
A cena passa-se em 1890.
A família está toda reunida na sala de jantar.
O senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um abade.
Dona Bernardina, sua esposa, está muito entretida a limpar a gaiola de um canário belga.
Os pequenos são dois, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o canário. Ele, encostado à mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das nossas folhas diárias.
Silêncio
De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta:
— Papai, que é plebiscito?
O senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme.
O pequeno insiste:
— Papai?
Pausa:
— Papai?
Dona Bernardina intervém:
— Ó seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar, que lhe faz mal.
O senhor Rodrigues não tem remédio senão abrir os olhos.
— Que é? que desejam vocês?
— Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito.
— Ora essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é plebiscito?
— Se soubesse, não perguntava.
O senhor Rodrigues volta-se para dona Bernardina, que continua muito ocupada com a gaiola:
— Ó senhora, o pequeno não sabe o que é plebiscito!
— Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei.
— Que me diz?! Pois a senhora não sabe o que é plebiscito?
— Nem eu, nem você; aqui em casa ninguém sabe o que é plebiscito.
— Ninguém, alto lá! Creio que tenho dado provas de não ser nenhum ignorante!
— A sua cara não me engana. Você é muito prosa. Vamos: se sabe, diga o que é plebiscito! Então? A gente está esperando! Diga!...
— A senhora o que quer é enfezar-me!
— Mas, homem de Deus, para que você não há de confessar que não sabe? Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Já outro dia foi a mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou, falou, falou, e o menino ficou sem saber!
— Proletário — acudiu o senhor Rodrigues — é o cidadão pobre que vive do trabalho mal remunerado.
— Sim, agora sabe porque foi ao dicionário; mas dou-lhe um doce, se me disser o que é plebiscito sem se arredar dessa cadeira!
— Que gostinho tem a senhora em tornar-me ridículo na presença destas crianças!
— Oh! ridículo é você mesmo quem se faz. Seria tão simples dizer: — Não sei, Manduca, não sei o que é plebiscito; vai buscar o dicionário, meu filho.
O senhor Rodrigues ergue-se de um ímpeto e brada:
— Mas se eu sei!
— Pois se sabe, diga!
— Não digo para me não humilhar diante de meus filhos! Não dou o braço a torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa! Vá para o diabo!
E o senhor Rodrigues, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta.
No quarto havia o que ele mais precisava naquela ocasião: algumas gotas de água de flor de laranja e um dicionário...
A menina toma a palavra:
— Coitado de papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que é tão perigoso!
— Não fosse tolo — observa dona Bernardina — e confessasse francamente que não sabia o que é plebiscito!
— Pois sim — acode Manduca, muito pesaroso por ter sido o causador involuntário de toda aquela discussão — pois sim, mamãe; chame papai e façam as pazes.
— Sim! Sim! façam as pazes! — diz a menina em tom meigo e suplicante. — Que tolice! Duas pessoas que se estimam tanto zangaram-se por causa do plebiscito!
Dona Bernardina dá um beijo na filha, e vai bater à porta do quarto:
— Seu Rodrigues, venha sentar-se; não vale a pena zangar-se por tão pouco.
O negociante esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente.
Ele entra, atravessa a casa, e vai sentar-se na cadeira de balanço.
— É boa! — brada o senhor Rodrigues depois de largo silêncio — é muito boa! Eu! eu ignorar a significação da palavra plebiscito! Eu!...
A mulher e os filhos aproximam-se dele.
O homem continua num tom profundamente dogmático:
— Plebiscito...
E olha para todos os lados a ver se há ali mais alguém que possa aproveitar a lição.
— Plebiscito é uma lei decretada pelo povo romano, estabelecido em comícios.
— Ah! — suspiram todos, aliviados.
— Uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil! É mais um estrangeirismo!...
Arthur Azevedo. Contos fora da moda, Editorial Alhambra – Rio de Janeiro, 1982, pág. 29.
sexta-feira, 27 de julho de 2007
Conto "Famigerado"
Foi de incerta feita — o evento. Quem pode esperar coisa tão sem pés nem cabeça? Eu estava em casa, o arraial sendo de todo tranqüilo. Parou-me à porta o tropel. Cheguei à janela.
Um grupo de cavaleiros. Isto é, vendo melhor: um cavaleiro rente, frente à minha porta, equiparado, exato; e, embolados, de banda, três homens a cavalo. Tudo, num relance, insolitíssimo. Tomei-me nos nervos. O cavaleiro esse — o oh-homem-oh — com cara de nenhum amigo. Sei o que é influência de fisionomia. Saíra e viera, aquele homem, para morrer em guerra. Saudou-me seco, curto pesadamente. Seu cavalo era alto, um alazão; bem arreado, ferrado, suado. E concebi grande dúvida.
Nenhum se apeava. Os outros, tristes três, mal me haviam olhado, nem olhassem para nada. Semelhavam a gente receosa, tropa desbaratada, sopitados, constrangidos coagidos, sim. Isso por isso, que o cavaleiro solerte tinha o ar de regê-los: a meio-gesto, desprezivo, intimara-os de pegarem o lugar onde agora se encostavam. Dado que a frente da minha casa reentrava, metros, da linha da rua, e dos dois lados avançava a cerca, formava-se ali um encantoável, espécie de resguardo. Valendo-se do que, o homem obrigara os outros ao ponto donde seriam menos vistos, enquanto barrava-lhes qualquer fuga; sem contar que, unidos assim, os cavalos se apertando, não dispunham de rápida mobilidade. Tudo enxergara, tomando ganho da topografia. Os três seriam seus prisioneiros, não seus sequazes. Aquele homem, para proceder da forma, só podia ser um brabo sertanejo, jagunço até na escuma do bofe. Senti que não me ficava útil dar cara amena, mostras de temeroso. Eu não tinha arma ao alcance. Tivesse, também, não adiantava. Com um pingo no i, ele me dissolvia. O medo é a extrema ignorância em momento muito agudo. O medo O. O medo me miava. Convidei-o a desmontar, a entrar.
Disse de não, conquanto os costumes. Conservava-se de chapéu. Via-se que passara a descansar na sela — decerto relaxava o corpo para dar-se mais à ingente tarefa de pensar. Perguntei: respondeu-me que não estava doente, nem vindo à receita ou consulta. Sua voz se espaçava, querendo-se calma; a fala de gente de mais longe, talvez são-franciscano. Sei desse tipo de valentão que nada alardeia, sem farroma. Mas avessado, estranhão, perverso brusco, podendo desfechar com algo, de repente, por um és-não-és. Muito de macio, mentalmente, comecei a me organizar. Ele falou:
"Eu vim preguntar a vosmecê uma opinião sua explicada..."
Carregara a celha. Causava outra inquietude, sua farrusca, a catadura de canibal. Desfranziu-se, porém, quase que sorriu. Daí, desceu do cavalo; maneiro, imprevisto. Se por se cumprir do maior valor de melhores modos; por esperteza? Reteve no pulso a ponta do cabresto, o alazão era para paz. O chapéu sempre na cabeça. Um alarve. Mais os ínvios olhos. E ele era para muito. Seria de ver-se: estava em armas — e de armas alimpadas. Dava para se sentir o peso da de fogo, no cinturão, que usado baixo, para ela estar-se já ao nível justo, ademão, tanto que ele se persistia de braço direito pendido, pronto meneável. Sendo a sela, de notar-se, uma jereba papuda urucuiana, pouco de se achar, na região, pelo menos de tão boa feitura. Tudo de gente brava. Aquele propunha sangue, em suas tenções. Pequeno, mas duro, grossudo, todo em tronco de árvore. Sua máxima violência podia ser para cada momento. Tivesse aceitado de entrar e um café, calmava-me. Assim, porém, banda de fora, sem a-graças de hóspede nem surdez de paredes, tinha para um se inquietar, sem medida e sem certeza.
— "Vosmecê é que não me conhece. Damázio, dos Siqueiras... Estou vindo da Serra..."
Sobressalto. Damázio, quem dele não ouvira? O feroz de estórias de léguas, com dezenas de carregadas mortes, homem perigosíssimo. Constando também, se verdade, que de para uns anos ele se serenara — evitava o de evitar. Fie-se, porém, quem, em tais tréguas de pantera? Ali, antenasal, de mim a palmo! Continuava:
— "Saiba vosmecê que, na Serra, por o ultimamente, se compareceu um moço do Governo, rapaz meio estrondoso... Saiba que estou com ele à revelia... Cá eu não quero questão com o Governo, não estou em saúde nem idade... O rapaz, muitos acham que ele é de seu tanto esmiolado..."
Com arranco, calou-se. Como arrependido de ter começado assim, de evidente. Contra que aí estava com o fígado em más margens; pensava, pensava. Cabismeditado. Do que, se resolveu. Levantou as feições. Se é que se riu: aquela crueldade de dentes. Encarar, não me encarava, só se fito à meia esguelha. Latejava-lhe um orgulho indeciso. Redigiu seu monologar.
O que frouxo falava: de outras, diversas pessoas e coisas, da Serra, do São Ão, travados assuntos, inseqüentes, como dificultação. A conversa era para teias de aranha. Eu tinha de entender-lhe as mínimas entonações, seguir seus propósitos e silêncios. Assim no fechar-se com o jogo, sonso, no me iludir, ele enigmava: E, pá:
— "Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado... faz-megerado... falmisgeraldo... familhas-gerado...?
Disse, de golpe, trazia entre dentes aquela frase. Soara com riso seco. Mas, o gesto, que se seguiu, imperava-se de toda a rudez primitiva, de sua presença dilatada. Detinha minha resposta, não queria que eu a desse de imediato. E já aí outro susto vertiginoso suspendia-me: alguém podia ter feito intriga, invencionice de atribuir-me a palavra de ofensa àquele homem; que muito, pois, que aqui ele se famanasse, vindo para exigir-me, rosto a rosto, o fatal, a vexatória satisfação?
— "Saiba vosmecê que saí ind'hoje da Serra, que vim, sem parar, essas seis léguas, expresso direto pra mor de lhe preguntar a pregunta, pelo claro..."
Se sério, se era. Transiu-se-me.
— "Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém ciente, nem têm o legítimo — o livro que aprende as palavras... É gente pra informação torta, por se fingirem de menos ignorâncias... Só se o padre, no São Ão, capaz, mas com padres não me dou: eles logo engambelam... A bem. Agora, se me faz mercê, vosmecê me fale, no pau da peroba, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já lhe perguntei?"
Se simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esses trizes:
— Famigerado?
— "Sim senhor..." — e, alto, repetiu, vezes, o termo, enfim nos vermelhões da raiva, sua voz fora de foco. E já me olhava, interpelador, intimativo — apertava-me. Tinha eu que descobrir a cara. — Famigerado? Habitei preâmbulos. Bem que eu me carecia noutro ínterim, em indúcias. Como por socorro, espiei os três outros, em seus cavalos, intugidos até então, mumumudos. Mas, Damázio:
— "Vosmecê declare. Estes aí são de nada não. São da Serra. Só vieram comigo, pra testemunho..."
Só tinha de desentalar-me. O homem queria estrito o caroço: o verivérbio.
— Famigerado é inóxio, é "célebre", "notório", "notável"...
— "Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender. Mais me diga: é desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?"
— Vilta nenhuma, nenhum doesto. São expressões neutras, de outros usos...
— "Pois... e o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?"
— Famigerado? Bem. É: "importante", que merece louvor, respeito...
— "Vosmecê agarante, pra a paz das mães, mão na Escritura?"
Se certo! Era para se empenhar a barba. Do que o diabo, então eu sincero disse:
— Olhe: eu, como o sr. me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora destas era ser famigerado — bem famigerado, o mais que pudesse!...
— "Ah, bem!..." — soltou, exultante.
Saltando na sela, ele se levantou de molas. Subiu em si, desagravava-se, num desafogaréu. Sorriu-se, outro. Satisfez aqueles três: — "Vocês podem ir, compadres. Vocês escutaram bem a boa descrição..." — e eles prestes se partiram. Só aí se chegou, beirando-me a janela, aceitava um copo d'água. Disse: — "Não há como que as grandezas machas duma pessoa instruída!" Seja que de novo, por um mero, se torvava? Disse: — "Sei lá, às vezes o melhor mesmo, pra esse moço do Governo, era ir-se embora, sei não..." Mas mais sorriu, apagara-se-lhe a inquietação. Disse: — "A gente tem cada cisma de dúvida boba, dessas desconfianças... Só pra azedar a mandioca..." Agradeceu, quis me apertar a mão. Outra vez, aceitaria de entrar em minha casa. Oh, pois. Esporou, foi-se, o alazão, não pensava no que o trouxera, tese para alto rir, e mais, o famoso assunto.
Guimarães Rosa
Texto extraído do livro "Primeiras Estórias", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1988, p 13
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