sexta-feira, 6 de março de 2020

Contos inacabados III

Em busca do infinito

Há muitos anos, quando o mundo era pequeno, um jovem reuniu a família e pediu permissão ao pai para conhecer outros sítios, após ter ouvido de um passante existirem muitos lugares bonitos e pessoas diferentes que o viandante conhecera durante longos anos de caminhadas. Com o consentimento da família – nessa noite, a mãe e os outros filhos resolveram também se manifestar, dando-lhes os mais variados conselhos – o recém- adolescente resolveu andar a pé, ou pegar “carona” em carroças, a fim de conhecer os tais lugares existentes e ainda outros que poderiam existir. Assim, pegou escassas mudas de roupa, uma sandália, um chapéu de couro cru, uma faca, duas pedrinhas de fazer fogo, um mapa rústico, marcando os pontos por onde passava, como nas histórias de “Era uma vez”, e partiu antes do dia raiar. Mas ia se esquecendo da moringa e dos pães preparados pela mãe como mantimentos por quase uma semana. A família foi até a porta da casa de barro para dar o adeus ao pequeno, antes dele dobrar numa curva dali a uns tantos metros mais ou menos. Antes da partida, o pai meteu a mão no bolso da calça larga e surrada e tirou umas poucas moedas de prata, fruto de mais de cinquenta anos de trabalho, colocando-as nas mãos do filho, que agradeceu com os olhos molhados e vermelhos. Ao atingir a curva, o moço tirou o chapéu da cabeça e o abanou para a família tristonha, mas confiante de que um dia talvez o filho voltasse para alegrar os pais e os irmãos. 

E assim, confiante na sua juventude passaram-se os dias e o curioso, bisbilhoteiro terceiro filho daquele casal valeu-se do ditado popular “pernas pra que te quero” dando início à sua corrida mundo afora. Andou, que andou, sempre perguntando às pessoas onde estava e tomando nota, num papel conseguido com uma feirante, onde ele parou para comer um quinhão de comida e encher a moringa de água. Como é sabido, os viandantes ajudam outros andarilhos como eles. À noite, quando deitava para dormir à beira de estradas, bosques, lugarejos... ouvia histórias e mais histórias ao redor de pequenas fogueiras. Havia várias delas que falavam de coisas sobrenaturais, como conversas com espíritos, com caveiras vestidas com uma capa preta e outras coisas mais. Tanto é verdade que, numa das suas paragens, estando os homens a prosear depois da janta, passou por eles um homem curvo, avelhantado com um cajado na mão. Todos o olharam amedrontados. O jovem, sempre enxerido, perguntou aos demais quem era? Somente um homem passado das três décadas se aventurou em dizer quem era: “é o judeu errante”. Não satisfeito com a resposta, pediu o jovem: me fale mais dele, porque pelo olhar de vocês o homem parece um assombro. E é disse o que se manifestou. “Diz a lenda que quando Jesus estava caindo na sua caminhada para o sofrimento, caiu defronte de um homem que trabalhava com couro. Jesus lhe pediu ajuda e ele teria respondido com deboches e parece que também agrediu Nosso Senhor fisicamente. Então o filho de Deus o condenou a caminhar sem parar pelo mundo e sem nunca morrer, até que ele, Jesus, voltasse.” Ah!, perguntou o jovem: por isso que ele não se junta a nós? Sim, respondeu o homem da idade de Cristo. 

Algumas histórias variadas o jovem percebia ou já tinha ouvido falar, dada as suas perambulações pela terra. Muitas, eram de seu conhecimento. Algumas escutava meio sonolento, e as repassava a novos caminhantes, sempre aumentando um pouco pra torná-las mais vivas. Outras, as guardava consigo. O por quê?, não se sabe, mas as preservava como se fosse um segredo. Quando à noite chegava e não havia com quem prosear, ele tirava da bolsa de couro as duas pedrinhas e as atritava pra fazer a faísca e tocar fogo nas folhas secas, nos gravetos e nos pedaços de galhos mais grossos das árvores que ficavam mais perto. Com isso, o fogo durava até de manhã. Servia para aquecê-lo, espantar animais de maior e pequeno porte como os insetos que voavam em torno da fogueira. Nunca entrara numa mata fechada, tal como orientava os mandamentos dos viajores. Nessas horas, aproveitava e refletia sobre o sentido profundo contido nas histórias narradas com “engenho e arte”, como dizia Camões, pelos andarilhos. Ressaltavam o bem e o mal, a certeza e a incerteza, o amor e o desamor, a amizade e a inimizade, a inveja, o rancor, o abandono, o ciúme e tantas coisas mais. 

A respeito do mal, disseram-lhe haver um homem dono de uma fazenda onde plantava milho. E para espantar as aves que vinham bicar os frutos contratava meninos para espantá-los com uma vara comprida e um pedaço de pano amarrado na ponta com se fosse uma bandeira. Os garotos passavam o dia inteiro, debaixo de sol forte, mal alimentados e sedentos, cumprindo suas tarefas pela barganha de alguns trocados quase nunca recebidos. Várias crianças adoeceram e não se sabe o fim que levaram. Um dia, passou pela estada um jovenzinho sacudindo uma daquelas bandeiras, alheio e tudo e a todos. Disseram que o sol tinha queimado os seus miolos e por isso caminhava sem rumo e sem olhar pra ninguém. Doutra feita, recordou-se moço, recém-casado, à procura de sua mulher. Contavam que o rapaz, tímido, passara anos se preparando para casar com uma jovem rica, cuja família não aprovava a união dos dois. A moça vivia em conflito entre o amor e os parentes mais chegados a ela. Certa ocasião, o pai chegou a proferir a ameaça de deserdá-la. Mas o tempo foi passando e os enamorados continuavam encontrando-se com menos frequência e às escondidas. Chegado o dia do casamento, a mansão estava parcamente decorada com algumas flores do campo. Não havia convidados, somente os moradores da casa. Um padre de uma localidade distante os casou pela manhã. Passadas poucas horas, antes do almoço, a jovem foi para seu quarto trocar de roupa. Vestiu um vestido simples e desesperada há dias pela pressão da família, surtou e saiu pela porta dos fundos, deitando-se sobre o feno de uma carroça que passava, mandando o carroceiro tocar o carro para qualquer lugar onde nunca mais fosse encontrada por ninguém. E assim foi feito. Quem contou essa história foi o próprio condutor, um indivíduo mal-educado e rude. Ele mesmo não sabia onde tinha largado a quase adolescente. O jovem agora maduro, com a mesma roupa que vestiu no casamento, há anos vagueava ociosamente, falando as mesmas palavras: “quem viu uma jovem de cabelos longos deitada numa carroça de feno”? 

Maduro, também, estava o ex-adolescente que saíra de casa em busca de conhecimento. Contou-nos ele que uma noite, já bastante cansado, ouviu de um velho de barbas longas, amareladas pelo sol, fumando um cachimbo diferente, o seguinte: - Se você achar uma estrada comprida, ladeada por muitas árvores de folhagem amarela, encontrará, no final do caminho, uma passagem que o levará à certeza do que é o infinito. Lá, você encontrará tudo o que veio saber e conhecer. Estas últimas palavras quase não foram percebidas, porque as pálpebras do homem carregavam consigo o peso de muitas léguas percorridas durante anos. 

Nas suas andanças, aprendeu muitas coisas, mas desconhecia, tinha confiança disso, o significado da palavra infinito. No dia seguinte, ainda cedinho procurou o velho, mas este partira antes de a aurora despertar. Então, a criatura decidiu seguir as palavras do velhinho; não sossegaria enquanto não encontrasse aquela estrada e o significado da palavra tão bonita: infinito. Andou o dia todo e à noitinha pediu a uma pequena roda de homens maduros e jovens se ali podia se arranchar. Contou para os presentes as intrigantes vaticinações do ancião ouvidas do ancião, até por que ele nada perguntara ao idoso. Um dos rapazes ficou impressionado com tal profecia e se ofereceu a acompanhar o caminhante. Saíram, como sempre, quando ainda surgiam os tênues raios solares. Por quanto tempo e por onde andavam não sabiam dizer, mas o homem continuava marcando os pontos no mapa. Até que outro viandante disse para eles; “há meses passei por essa estrada, é perto do ´Reino do Limo Verde´” e indicou aos curiosos a rota complicada a percorrer. 

Mal raiara o dia, os dois começaram a andar. Caminharam e sempre perguntando a quem encontravam a mesma questão feita ao último idoso. E nada. Estavam quase desistindo, quando o homem mais moço avistou a estrada; pararam para ver melhor. Observaram que no final do caminho aparecia algo como se fosse uma abertura, uma passagem a dar em outro lugar. E foram andando, andando; à medida que se aproximavam da abertura, o dono do mapa ficava sobressaltado e um sopro no seu ouvido disse para ele não atravessar a entrada. 

Falou ao companheiro aquilo que acabara de ouvir, mas este disse: eu vou em frente. E foi. Distanciou-se do amigo poucos passos adiante. Ao colocar o pé dentro do outro lado, foi sugado por algo estranho. Aquele, outrora jovem esperançoso de conhecer o mundo, disse para seus irmãos, também velhos, e seus sobrinhos, que do outro lado do acesso havia um portal cósmico levando o viajor a outro universo. Seria este o infinito procurado por mim? 

Célia Coelho Bassalo 
21/09/2013

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