Um frio sonoro àquela noite
Fizera um frio sonoro àquela noite. Às seis horas, folhas e flores ainda derramavam lágrimas de orvalho. Da janela por onde ela olhava a calçada e asfalto úmidos, as casas fechadas, as lojas com vitrines escuras, poucas e fracas lâmpadas acesas, uma brisa atravessou seu corpo e se perdeu nas teias de uma aranha. Via a rua com o silêncio predominando sobre a paisagem. Não imaginara que em pouco tempo o local explodiria em rumores, barulhos rotineiros. Era a sua primeira manhã naquele bairro estranho, espelho de seu próprio interior. Trouxera consigo um mapa da cidade, caso precisasse. Ali teria que viver uma vida diferente, ser outra, ou ela mesma? Isso lhe causava uma sensação de mal-estar no estômago. Tornou a olhar a rua; assustou-se só de pensar que poderia ter morado ali. Começou a procurar algum detalhe, elemento..., tentando justificar seu susto ou covardia resignada. Com medo da resposta, virou lentamente as costas para a janela de uma só folha, procurando uma razão para isso. Queria entender o porquê desse giro tão calmo e tão intenso, quando, por certo, lá fora, o existir já começara a fervilhar. O que a friagem, o freio dos bondes rangendo nos trilhos, assoviando, provocavam naquela mulher de meia idade, a ponto de preferir o ambiente abafado, quase totalmente escuro do apertado quarto que alugara no sobrado de uma edificação simples construída com essa finalidade há tantos anos? A cama curta, menor do que ela precisava para esticar as pernas, a mesinha redonda com flores murchas – e um forte cheiro de suor como se alguém acabasse de sair daquele cubículo –, uma velha cadeira de palhinha e uma garrafa d’água.
Ao lado da cama, meio aberta, ficava a porta verde, sem trinco, mostrando a entrada para o banheiro com bacia, lavatório e chuveiro. A água era racionada, assim como a luz. Esses dois compartimentos com seus poucos objetos foram olhados longamente um por um pela mulher. Havia, ela tinha certeza, algo de familiar escondido ali, mas como e com quem esclarecer aquela convicção tão imperiosa com a fome que estava sentindo no momento?
O quarto, sem dúvida, fazia tempo que não era ocupado; o cheiro de suor e mofo comprovavam a sua suspeita e começaram a produzir-lhe náuseas. Esse cômodo lhe fez aflorar um cansaço solitário. Abriu a bolsa, pegou um pacotinho de chá e ferveu a camomila no fogareirinho a álcool que sempre carregava consigo desde a última vez em que se deslocou por mais tempo. Com o estômago mais aliviado, resolveu apresentar-se naquela mesma manhã no emprego para onde fora transferida sem saber o porquê. Mas o corpo continuava pesado e um sutil rancor a envolveu como se ela fora humilhada em sua dignidade mais íntima por alguma coisa que ainda iria acontecer e para a qual não estava preparada, daí lhe advir um súbito medo aguilhoado. A vida parece tê-la transformado numa daquelas flores murchas. Fora golpeada em algum momento de sua existência de não mais de trinta anos. Onde? Quando? Por quem? Aquela secura vinha se arrastando há vários anos, ela bem sabia. Resolveu não se apresentar à fábrica, pela manhã. Puxou a cortina descorada, voltou-se na direção da cama; aí entendeu porque a porta do banheiro estava meio aberta quando ela entrou. Era por onde passava uma réstia de luz natural que iluminava o quarto. Deitou-se até a hora de sair; faria um lanche e andaria a pé uns cinco quarteirões até chegar ao local e apresentar-se à manufatura. Cumpridas as formalidades, vestiu um uniforme cinza, de tecido grosso, amarrou um lenço claro na cabeça, sentou-se como as demais funcionárias à cadeira em frente a uma velha máquina de costura, recebeu as instruções – incluindo a de não conversar com qualquer pessoa – e começou a costurar. Uma supervisora parava diante de todas as costureiras, a fim de observar a qualidade e a agilidade do trabalho. Olhava-as de maneira fria e demorada. Parou em frente à mulher, dirigiu-lhe um olhar distante e comprimiu a garganta.
Deteve-se diante dela mais do que fazia com as outras operárias, encarou-a e perplexa, com um olhar indeciso, perturbado e interrompeu bruscamente a missão. Ao vê-la, pensou numa pequena face, que há muito lha haviam arrancado. Sem procurar, por ora, fixar-se no acontecido, a recém-chegada continuou cosendo, cosendo. Entrou no seu quartinho já de noite, com a impressão de que um vulto a espreitara seguindo-a no caminho. Não tinha certeza, isso por certo era devido ao acontecimento incomum desse dia, pensou. Fazia um mês que ela começara a trabalhar no novo emprego. O ambiente em nada mudara. Entrava, assinava o nome num caderno de capa dura, pautado, e sentava-se à máquina sem ouvir nem poder dar um bom dia que fosse. Assim desenrolava-se o monótono e cansativo tempo. Se ao menos ela tivesse um ombro para soluçar suas mágoas, talvez as suas dores internas, prisioneiras, adiassem o que mais tarde seria inevitável. Continuou perdida. A supervisora seguia cumprindo a sua obrigação periódica, cotidiana, mas deixou de parar por mais tempo na máquina da costureira, disfarçando-se entre um esquecer involuntário e um consciente não querer parar. A partir daquele fato, a vistoria de todos os equipamentos passou a ser mais rápida; a inspetora parecia querer sair daquele setor fabril com a pressa de quem foge de si mesma. A costureira despertara na fiscal uma expressão dir-se-ia familiar. Com o passar dos dias, um abatimento envolveu o rosto martirizado há mais de meio século. Dias depois foi substituída por um senhor tão sofrido quanto se mostrara a funcionária na sua última inspeção. A costureira, não sabe como, encheu-se de coragem e perguntou ao homem de suspensórios e calça listrada se a senhora de quem ele assumira o lugar adoecera. Foi repreendida em voz alta e teve descontado o dia de trabalho. Perguntou a si mesma: por que sua vida teria de ser assim? Tentou encontrar uma resposta que não conseguiu expressar, e se emaranhou na costura dos uniformes grosseiros. Ao meio dia tocou a sirene chamando as operárias para o almoço, quase sempre um pedaço de carne boiando num caldo ralo, um pão dormido e uma pequena caneca de água. O inverno estava no fim. Não sei se a mudança da estação descontraiu, por minutos, as mulheres no refeitório. Nesse mesmo dia, a costureira da máquina número 35 levantou a cabeça e viu de relance a supervisora encostada à porta de saída das trabalhadoras. Estava sem o seu gorro habitual. Quando o olhar das duas se encontrou, houve um mal-estar simultâneo. A senhora agarrou-se na maçaneta da porta, foi acudida pelo vigia e levada ao ambulatório que ficava no lado direito do corredor por onde as funcionárias sairiam em fileira. A costureira deixou-se ficar para trás e com o corpo vacilante olhou para o interior da sala de atendimentos emergenciais, fechando os olhos, como que tentando afastar a certeza de que aquela senhora poderia ser a sua mãe. Uma débil espécie de simbiose as unira. Para as duas, a espera até o final da tarde pareceu longa demais. O corpo febril da nova funcionária desejava voltar para o cômodo empoeirado, abrigo de seu corpo franzino. Apressou o caminhar, subiu a velha escada rangente, entrou no quarto com a cabeça em desordem, o passado estampado à sua frente, o homem empurrando a sua mãe daquele mesmo aposento para um comboio, uma mulher puxando a criança pelo braço, colocando-a num ônibus sujo de barro, e o choro noturno da menina criada num orfanato. Com medo do escuro, acendeu a pequenina lâmpada que havia no quartinho. Deitou-se. Estava com febre. Disfarçada de enfermeira da fábrica, a supervisora entrou no prédio segurando uma caixinha de farmácia, com poucos objetos de primeiros socorros. Não demorou muito, a operária ouviu um barulho de botinas subindo a escada e uma batida surda à sua porta. Vinte e seis anos tinham separado mãe e filha. A guerra, terminada fazia algum tempo, sepultara com ela o seu pai e o seu irmão.
Célia Coelho Bassalo
Dez/Jan/ 2013
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