quarta-feira, 11 de março de 2020

Contos inacabados IV


Meu tio camelô 

Na rua em que a menina morava — defronte de uma praça ­— morava uma quantidade enorme de crianças. A idade variava muito, porém os mais velhos ainda não tinham chegado à adolescência. A essa turma, juntavam-se outros garotos e garotas da redondeza. Por isso, o quarteirão era sempre muito animado. Imaginem que tinham pessoas conhecidas apenas pelo apelido, a exemplo do Sumano. Era assim chamado por todos, inclusive pela própria irmã. Mais tarde, a menina veio a saber que se tratava da expressão: “seu mano”, correspondente a amigo, camarada, companheiro, colega... 

Na vizinhança existia uma fábrica de engarrafar vinho e fazer água gasosa, isto é, água mineral que contém gás carbônico dissolvido. Compravam-se garrafas artisticamente trabalhadas, próprias para essa última, chamadas sifão. Num fim de tarde, onde as pessoas estavam sentadas em cadeiras proseando, um alvoroço se estabeleceu na porta do estabelecimento. Um portador deixou uma carta para a mulher do proprietário do comércio. A carta foi passada de mão em mão à família dos moradores do dono, que não eram poucos. A garotada, brincando na calçada, ficou curiosa e procurou a filha mais velha do senhor para saber o motivo da euforia. A menina respondeu que ia chegar um parente para visitar a família e que não morava na cidade há muitos anos. Era muito querido por todos por ser o mais novo dos irmãos, por ser conversador e por estar sempre de bom humor. O movimento da casa não parou depois do recebimento da carta. De vez em quando, durante quase duas semanas, chegavam parentes e entravam na casa ao lado do comércio onde morava a família. A menina, muito curiosa, queria saber o que iam fazer. Chamou a amiga e perguntou qual o motivo daquelas visitas não habituais. E teve a explicação. Eram parentes e pessoas que sabiam também fazer doces e certas comidas que não careciam guardar na geladeira para sua conservação. As moradoras da casa eram também exímias confeiteiras. Numa das noites, a curiosa entrou na casa e foi até a sala de jantar. Lá encontrou várias mulheres cortando papel de seda colorido para embalar doces e salgadinhos. As cores variadas davam à mesa um aspecto agradável de se ver. Às nove horas da noite, a mãe veio chamar a abelhuda para dormir. 

Até que enfim atracou no porto da cidade um navio a vapor que fazia viagem de Norte a Sul do país. Dele desceu o parente tão esperado trazendo consigo duas maletas, uma de couro e outra de madeira. Estava de calça escura, camisa e paletó claros. Já tinha tirado a gravata, que jogara sobre os ombros. Como já era de noite quando o viajante chegou à casa da família, a menina não chegou a ver as feições do homem. Esse motivo deve-se ao fato de a luz elétrica ser muito fraca, daí ser chamada pelo povo de tição. A parentela estava toda reunida na calçada e novo alvoroço se formou; era mais quem queria abraçar o recém-chegado, que descera de um automóvel de praça com um dos moradores da casa. Depois de falar com a turma, todos entraram e a rua voltou a normal: crianças brincando e outros vizinhos conversando na calçada em cadeiras de balanço. 

Como o mês de julho era de férias escolares, cedo a intrometida já estava na rua esperando para ver se o viageiro aparecia. Nada o fez levantar da cama cedo. A amiga disse à companheira que no outro dia, pela manhã, o tio camelô, chamado assim pela família da vizinha, iria sair para trabalhar. Essa resposta causou um certo espanto à menina; primeiro porque ela não sabia o que era camelô, segundo por que ele sairia para trabalhar se viera, pensou a jovenzinha, para visitar a família. A menina ficou intrigada, mas deixou para lá essas questões. No outro dia, lá pelas nove e meia, a inquieta menina estava à porta esperando a saída do visitante que saiu de casa vestindo terno de gabardine cor de rosa, camisa branca, gravata listrada de branco e azul marinho, chapéu panamá e um par de sapatos de verniz branco com a ponta e o calcanhar pretos. Já estava carregando a maleta de madeira aberta e uma tira de pano passada pelo pescoço, o que segurava a pequena mala encostada à barriga daquele homem. A intrometida menina correu para ver o que tinha dentro do malote com várias divisões. Tomou essa de decisão, porque a vizinha estava ao lado do tio remexendo uns pregadores coloridos de cabelo. Os olhos da abelhuda correram pelo que tinha dentro daquele malote. Em grampos, pequenos espelhos, pentes, travessinhas para prender cabelos, uns maços de cabelo enrolado, compacto, que as mulheres usavam para fazer penteados semelhantes aos utilizados pelas artistas de cinema, de teatros de variedades, além de outras bugigangas mais. O homem atravessou a praça e a garota voltou para casa desiludida. Por quê?, nunca se soube. As aulas foram retomadas e, como as crianças ficavam na escola em tempo integral, o camelô foi esquecido pela investigadora; ela não perguntou mais por ele. Também não soube que fim ele levou. 

Anos mais tarde, a agora adolescente descobriu, para sua grande decepção, que camelô era um vendedor ambulante de quinquilharias e não uma espécie de figura importante pelo seu trajar, resquício da belle époque, vulto lendário como a então criança pensava.

Célia Coelho Bassalo

sexta-feira, 6 de março de 2020

Contos inacabados III

Em busca do infinito

Há muitos anos, quando o mundo era pequeno, um jovem reuniu a família e pediu permissão ao pai para conhecer outros sítios, após ter ouvido de um passante existirem muitos lugares bonitos e pessoas diferentes que o viandante conhecera durante longos anos de caminhadas. Com o consentimento da família – nessa noite, a mãe e os outros filhos resolveram também se manifestar, dando-lhes os mais variados conselhos – o recém- adolescente resolveu andar a pé, ou pegar “carona” em carroças, a fim de conhecer os tais lugares existentes e ainda outros que poderiam existir. Assim, pegou escassas mudas de roupa, uma sandália, um chapéu de couro cru, uma faca, duas pedrinhas de fazer fogo, um mapa rústico, marcando os pontos por onde passava, como nas histórias de “Era uma vez”, e partiu antes do dia raiar. Mas ia se esquecendo da moringa e dos pães preparados pela mãe como mantimentos por quase uma semana. A família foi até a porta da casa de barro para dar o adeus ao pequeno, antes dele dobrar numa curva dali a uns tantos metros mais ou menos. Antes da partida, o pai meteu a mão no bolso da calça larga e surrada e tirou umas poucas moedas de prata, fruto de mais de cinquenta anos de trabalho, colocando-as nas mãos do filho, que agradeceu com os olhos molhados e vermelhos. Ao atingir a curva, o moço tirou o chapéu da cabeça e o abanou para a família tristonha, mas confiante de que um dia talvez o filho voltasse para alegrar os pais e os irmãos. 

E assim, confiante na sua juventude passaram-se os dias e o curioso, bisbilhoteiro terceiro filho daquele casal valeu-se do ditado popular “pernas pra que te quero” dando início à sua corrida mundo afora. Andou, que andou, sempre perguntando às pessoas onde estava e tomando nota, num papel conseguido com uma feirante, onde ele parou para comer um quinhão de comida e encher a moringa de água. Como é sabido, os viandantes ajudam outros andarilhos como eles. À noite, quando deitava para dormir à beira de estradas, bosques, lugarejos... ouvia histórias e mais histórias ao redor de pequenas fogueiras. Havia várias delas que falavam de coisas sobrenaturais, como conversas com espíritos, com caveiras vestidas com uma capa preta e outras coisas mais. Tanto é verdade que, numa das suas paragens, estando os homens a prosear depois da janta, passou por eles um homem curvo, avelhantado com um cajado na mão. Todos o olharam amedrontados. O jovem, sempre enxerido, perguntou aos demais quem era? Somente um homem passado das três décadas se aventurou em dizer quem era: “é o judeu errante”. Não satisfeito com a resposta, pediu o jovem: me fale mais dele, porque pelo olhar de vocês o homem parece um assombro. E é disse o que se manifestou. “Diz a lenda que quando Jesus estava caindo na sua caminhada para o sofrimento, caiu defronte de um homem que trabalhava com couro. Jesus lhe pediu ajuda e ele teria respondido com deboches e parece que também agrediu Nosso Senhor fisicamente. Então o filho de Deus o condenou a caminhar sem parar pelo mundo e sem nunca morrer, até que ele, Jesus, voltasse.” Ah!, perguntou o jovem: por isso que ele não se junta a nós? Sim, respondeu o homem da idade de Cristo. 

Algumas histórias variadas o jovem percebia ou já tinha ouvido falar, dada as suas perambulações pela terra. Muitas, eram de seu conhecimento. Algumas escutava meio sonolento, e as repassava a novos caminhantes, sempre aumentando um pouco pra torná-las mais vivas. Outras, as guardava consigo. O por quê?, não se sabe, mas as preservava como se fosse um segredo. Quando à noite chegava e não havia com quem prosear, ele tirava da bolsa de couro as duas pedrinhas e as atritava pra fazer a faísca e tocar fogo nas folhas secas, nos gravetos e nos pedaços de galhos mais grossos das árvores que ficavam mais perto. Com isso, o fogo durava até de manhã. Servia para aquecê-lo, espantar animais de maior e pequeno porte como os insetos que voavam em torno da fogueira. Nunca entrara numa mata fechada, tal como orientava os mandamentos dos viajores. Nessas horas, aproveitava e refletia sobre o sentido profundo contido nas histórias narradas com “engenho e arte”, como dizia Camões, pelos andarilhos. Ressaltavam o bem e o mal, a certeza e a incerteza, o amor e o desamor, a amizade e a inimizade, a inveja, o rancor, o abandono, o ciúme e tantas coisas mais. 

A respeito do mal, disseram-lhe haver um homem dono de uma fazenda onde plantava milho. E para espantar as aves que vinham bicar os frutos contratava meninos para espantá-los com uma vara comprida e um pedaço de pano amarrado na ponta com se fosse uma bandeira. Os garotos passavam o dia inteiro, debaixo de sol forte, mal alimentados e sedentos, cumprindo suas tarefas pela barganha de alguns trocados quase nunca recebidos. Várias crianças adoeceram e não se sabe o fim que levaram. Um dia, passou pela estada um jovenzinho sacudindo uma daquelas bandeiras, alheio e tudo e a todos. Disseram que o sol tinha queimado os seus miolos e por isso caminhava sem rumo e sem olhar pra ninguém. Doutra feita, recordou-se moço, recém-casado, à procura de sua mulher. Contavam que o rapaz, tímido, passara anos se preparando para casar com uma jovem rica, cuja família não aprovava a união dos dois. A moça vivia em conflito entre o amor e os parentes mais chegados a ela. Certa ocasião, o pai chegou a proferir a ameaça de deserdá-la. Mas o tempo foi passando e os enamorados continuavam encontrando-se com menos frequência e às escondidas. Chegado o dia do casamento, a mansão estava parcamente decorada com algumas flores do campo. Não havia convidados, somente os moradores da casa. Um padre de uma localidade distante os casou pela manhã. Passadas poucas horas, antes do almoço, a jovem foi para seu quarto trocar de roupa. Vestiu um vestido simples e desesperada há dias pela pressão da família, surtou e saiu pela porta dos fundos, deitando-se sobre o feno de uma carroça que passava, mandando o carroceiro tocar o carro para qualquer lugar onde nunca mais fosse encontrada por ninguém. E assim foi feito. Quem contou essa história foi o próprio condutor, um indivíduo mal-educado e rude. Ele mesmo não sabia onde tinha largado a quase adolescente. O jovem agora maduro, com a mesma roupa que vestiu no casamento, há anos vagueava ociosamente, falando as mesmas palavras: “quem viu uma jovem de cabelos longos deitada numa carroça de feno”? 

Maduro, também, estava o ex-adolescente que saíra de casa em busca de conhecimento. Contou-nos ele que uma noite, já bastante cansado, ouviu de um velho de barbas longas, amareladas pelo sol, fumando um cachimbo diferente, o seguinte: - Se você achar uma estrada comprida, ladeada por muitas árvores de folhagem amarela, encontrará, no final do caminho, uma passagem que o levará à certeza do que é o infinito. Lá, você encontrará tudo o que veio saber e conhecer. Estas últimas palavras quase não foram percebidas, porque as pálpebras do homem carregavam consigo o peso de muitas léguas percorridas durante anos. 

Nas suas andanças, aprendeu muitas coisas, mas desconhecia, tinha confiança disso, o significado da palavra infinito. No dia seguinte, ainda cedinho procurou o velho, mas este partira antes de a aurora despertar. Então, a criatura decidiu seguir as palavras do velhinho; não sossegaria enquanto não encontrasse aquela estrada e o significado da palavra tão bonita: infinito. Andou o dia todo e à noitinha pediu a uma pequena roda de homens maduros e jovens se ali podia se arranchar. Contou para os presentes as intrigantes vaticinações do ancião ouvidas do ancião, até por que ele nada perguntara ao idoso. Um dos rapazes ficou impressionado com tal profecia e se ofereceu a acompanhar o caminhante. Saíram, como sempre, quando ainda surgiam os tênues raios solares. Por quanto tempo e por onde andavam não sabiam dizer, mas o homem continuava marcando os pontos no mapa. Até que outro viandante disse para eles; “há meses passei por essa estrada, é perto do ´Reino do Limo Verde´” e indicou aos curiosos a rota complicada a percorrer. 

Mal raiara o dia, os dois começaram a andar. Caminharam e sempre perguntando a quem encontravam a mesma questão feita ao último idoso. E nada. Estavam quase desistindo, quando o homem mais moço avistou a estrada; pararam para ver melhor. Observaram que no final do caminho aparecia algo como se fosse uma abertura, uma passagem a dar em outro lugar. E foram andando, andando; à medida que se aproximavam da abertura, o dono do mapa ficava sobressaltado e um sopro no seu ouvido disse para ele não atravessar a entrada. 

Falou ao companheiro aquilo que acabara de ouvir, mas este disse: eu vou em frente. E foi. Distanciou-se do amigo poucos passos adiante. Ao colocar o pé dentro do outro lado, foi sugado por algo estranho. Aquele, outrora jovem esperançoso de conhecer o mundo, disse para seus irmãos, também velhos, e seus sobrinhos, que do outro lado do acesso havia um portal cósmico levando o viajor a outro universo. Seria este o infinito procurado por mim? 

Célia Coelho Bassalo 
21/09/2013

quinta-feira, 5 de março de 2020

Contos inacabados II

Um Natal na casa da senhora D´y

Era Natal e chovia. Como acontecia todos os anos, desde novembro a "Árvore de Natal" era montada. Havia todo um ritual para isso, a começar de onde o pinheiro artificial era guardado ao final das festas a ser comemoradas — um pequeno sótão, onde se depositavam antigas recordações e um álbum de couro que não se folheava há anos, pois a chave oxidara e se partira dentro da fechadura. Ali, diziam antigas pessoas conhecidas, estava toda a história da família que viera de um país cuja procedência a genealogia da senhora D´y intencionalmente quisera esquecer.

Há mais de sessenta anos, um canto da casa, abrigava a árvore, e quando esta era desmanchada um gnomo de mármore, ocupava o seu lugar, durante dez meses. Colocado esse símbolo natalino na sala, o anão era carregado para o centro de um canteiro no jardim. Os atuais moradores da mansão acreditavam ser aquela pequena e feia criatura representante de um espírito que habitara o interior da Terra guardando a fortuna dos ancestrais da casa e, em tempos idos, após ascender à superfície, distribuiu a riqueza aos antigos membros da estirpe. Quando quis retornar ao seu lugar de origem, fora impedido por outros espíritos que ali naquele pedaço de chão o petrificaram. Antes de retornar àquela pequena porção de terreno, era tradição da casa arrancar o mato, revolver a terra e plantar novas mudas de roseiras. Esse hábito, diziam, além de manter o vínculo sutil com a tradição e com a terra, tornava as plantas mais viçosas quando a primavera chegasse.

Estando o pinheiro no seu devido e esconso lugar, ao lado de uma escada de madeira meio escura, iniciava-se a decoração. Tudo na árvore era concebido artesanalmente. As bolas eram feitas de lãs coloridas; os anjinhos, minúsculos meninos ou meninas alados, cujos vestidos de tecido quadriculado, ainda possuíam um desgastado e antigo brilho. As asas eram de penas brancas e os sapatinhos de um couro azul e delicado; os outros enfeites como as frutas, eram também de fazenda, matizada ou não. Deixada por último, ficava a iluminação feita com lâmpadas de uma só cor e transparentes, o que mostrava a árvore e a casa nos seus estados de velhice. Todos os adornos mostravam-se desbotados assim como a pintura das paredes com desenhos de leve e variada folhagem.

Entre o portão de entrada e a porta principal havia uns poucos passos; logo em seguida, no alto de uma escada de mármore, existia um largo patamar coberto onde uma figura esguia de homem aguardava os convidados e os encaminhava a um compartimento anterior à sala principal. Ali, esses convidados acomodavam-se em confortáveis e antigos móveis de madeira e almofadados de veludo cinza. Eram poucos, e sempre as mesmas pessoas que anualmente se reuniam naquela noite para a ceia. Começaram a chegar por volta do início da noite, pois o jantar era servido às vinte e uma horas, dada a idade dos convivas já ter ultrapassado muito mais de meio século. Vinham o médico da família — sujeito alegre do grupo —, pessoa humana e caridosa, que mantinha um pequeno asilo para idosos abandonados ao relento. Era solteiro; o tabelião, um homem branco, avermelhado, boca larga e barrigudo; um poeta, sempre comedido e um pintor, este responsável pelos retratos de alguns ancestrais da casa feitos em óleo sobre tela. Esses três senhores estavam acompanhados de suas respectivas mulheres, vestidas com tecidos grossos e de maneira sóbria para a noite fria e chuvosa de vinte e quatro de dezembro.

Quando os últimos convidados chegaram, uma governanta vetusta, de tez muito branca, aparentando ser uma pessoa ríspida, foi anunciar à dona da casa de que todos os vindos para o encontro já se achavam presentes. O comparecimento das únicas remanescentes da família, a anfitriã e com essa uma sobrinha, que a dona da casa adotara desde menina, fechou-se o número dos que iriam compor a mesa na sala seguinte. 

Antes do jantar, serviram uns chás de sabores diferentes, muito ao gosto dos presentes. As histórias acumuladas durante o ano foram iniciadas pelo tabelião, que à medida que as narrava eram recebidas com risos; em seguida, o poeta tirou do bolso da casaca uns papéis e recitou seus poemas escolhidos. Um deles foi criado para festejar aquele Natal; foi muito aplaudido pelos ouvintes. O pintor desenrolou uma tela. Era o retrato da sobrinha, que na hora da troca de mimos, iria oferecer à tia para compor a galeria familiar dos demais retratados. O último dos amigos a se manifestar foi o médico. Contou uma história hilária corando a face das senhoras. Essas abriram seus antigos leques de renda e cobriram parcialmente os rostos envergonhados. Quem esboçou um sorriso foi a sobrinha, logo repreendida pelo olhar severo da tia.

O jantar foi servido na hora marcada. Havia pouca variedade de pratos, eram de aves já cortadas em pequenos pedaços finos, como fina era a porcelana, pintada à mão, em que foram oferecidos. Um dos pratos preferidos com temperos acre-doces, que davam à comida uma tonalidade meio avermelhada, agradou aos comensais, daí ser repetido por quase todos os presentes. O acompanhamento, tão perfeito esteticamente quanto a variedade de sabores das aves dava pena de ser desmanchados pelas colheres de prata. A mesa era longa e em várias cadeiras não havia ninguém sentado. Pertenciam, decerto, a ex-convivas já finados e aos parentes desaparecidos pela idade avançada, haja vista os rostos dos retratados; alguns mais enrugados que os outros. Nas pinturas emolduradas em madeira com folhas de ouro, esculpidas por delicadas mãos artísticas, sobressaíam flores suaves, querubins e folhas de acanto. Todos os retratos estavam pendurados por compridos e retorcidos fios de seda. 

Ao jantar, seguiu-se a farta sobremesa apresentada de maneira primorosa tanto quanto aquele. Era composta de pequenos doces coloridos e de uma leveza aparente e gustativa. Antes de servirem-se, fez-se uma oração de agradecimento; todos baixaram as cabeças em sinal de respeito, acompanhados ao piano por uma das belas composições de Debussy tocada com delicada emoção pela sobrinha de miss D´y.

Ao final, voltaram para a antessala, conversaram mais um pouco a respeito do belo Natal e despediram-se com um abraço longo e demorado. Nos olhos rolaram lágrimas discretas, pois não sabiam se os seus lugares, à mesa, estariam vazios no próximo ano.

Célia Coelho Bassalo
17 07 2013

segunda-feira, 2 de março de 2020

Contos inacabados I

Um frio sonoro àquela noite

Fizera um frio sonoro àquela noite. Às seis horas, folhas e flores ainda derramavam lágrimas de orvalho. Da janela por onde ela olhava a calçada e asfalto úmidos, as casas fechadas, as lojas com vitrines escuras, poucas e fracas lâmpadas acesas, uma brisa atravessou seu corpo e se perdeu nas teias de uma aranha. Via a rua com o silêncio predominando sobre a paisagem. Não imaginara que em pouco tempo o local explodiria em rumores, barulhos rotineiros. Era a sua primeira manhã naquele bairro estranho, espelho de seu próprio interior. Trouxera consigo um mapa da cidade, caso precisasse. Ali teria que viver uma vida diferente, ser outra, ou ela mesma? Isso lhe causava uma sensação de mal-estar no estômago. Tornou a olhar a rua; assustou-se só de pensar que poderia ter morado ali. Começou a procurar algum detalhe, elemento..., tentando justificar seu susto ou covardia resignada. Com medo da resposta, virou lentamente as costas para a janela de uma só folha, procurando uma razão para isso. Queria entender o porquê desse giro tão calmo e tão intenso, quando, por certo, lá fora, o existir já começara a fervilhar. O que a friagem, o freio dos bondes rangendo nos trilhos, assoviando, provocavam naquela mulher de meia idade, a ponto de preferir o ambiente abafado, quase totalmente escuro do apertado quarto que alugara no sobrado de uma edificação simples construída com essa finalidade há tantos anos? A cama curta, menor do que ela precisava para esticar as pernas, a mesinha redonda com flores murchas – e um forte cheiro de suor como se alguém acabasse de sair daquele cubículo –, uma velha cadeira de palhinha e uma garrafa d’água. 

Ao lado da cama, meio aberta, ficava a porta verde, sem trinco, mostrando a entrada para o banheiro com bacia, lavatório e chuveiro. A água era racionada, assim como a luz. Esses dois compartimentos com seus poucos objetos foram olhados longamente um por um pela mulher. Havia, ela tinha certeza, algo de familiar escondido ali, mas como e com quem esclarecer aquela convicção tão imperiosa com a fome que estava sentindo no momento? 

O quarto, sem dúvida, fazia tempo que não era ocupado; o cheiro de suor e mofo comprovavam a sua suspeita e começaram a produzir-lhe náuseas. Esse cômodo lhe fez aflorar um cansaço solitário. Abriu a bolsa, pegou um pacotinho de chá e ferveu a camomila no fogareirinho a álcool que sempre carregava consigo desde a última vez em que se deslocou por mais tempo. Com o estômago mais aliviado, resolveu apresentar-se naquela mesma manhã no emprego para onde fora transferida sem saber o porquê. Mas o corpo continuava pesado e um sutil rancor a envolveu como se ela fora humilhada em sua dignidade mais íntima por alguma coisa que ainda iria acontecer e para a qual não estava preparada, daí lhe advir um súbito medo aguilhoado. A vida parece tê-la transformado numa daquelas flores murchas. Fora golpeada em algum momento de sua existência de não mais de trinta anos. Onde? Quando? Por quem? Aquela secura vinha se arrastando há vários anos, ela bem sabia. Resolveu não se apresentar à fábrica, pela manhã. Puxou a cortina descorada, voltou-se na direção da cama; aí entendeu porque a porta do banheiro estava meio aberta quando ela entrou. Era por onde passava uma réstia de luz natural que iluminava o quarto. Deitou-se até a hora de sair; faria um lanche e andaria a pé uns cinco quarteirões até chegar ao local e apresentar-se à manufatura. Cumpridas as formalidades, vestiu um uniforme cinza, de tecido grosso, amarrou um lenço claro na cabeça, sentou-se como as demais funcionárias à cadeira em frente a uma velha máquina de costura, recebeu as instruções – incluindo a de não conversar com qualquer pessoa – e começou a costurar. Uma supervisora parava diante de todas as costureiras, a fim de observar a qualidade e a agilidade do trabalho. Olhava-as de maneira fria e demorada. Parou em frente à mulher, dirigiu-lhe um olhar distante e comprimiu a garganta. 

Deteve-se diante dela mais do que fazia com as outras operárias, encarou-a e perplexa, com um olhar indeciso, perturbado e interrompeu bruscamente a missão. Ao vê-la, pensou numa pequena face, que há muito lha haviam arrancado. Sem procurar, por ora, fixar-se no acontecido, a recém-chegada continuou cosendo, cosendo. Entrou no seu quartinho já de noite, com a impressão de que um vulto a espreitara seguindo-a no caminho. Não tinha certeza, isso por certo era devido ao acontecimento incomum desse dia, pensou. Fazia um mês que ela começara a trabalhar no novo emprego. O ambiente em nada mudara. Entrava, assinava o nome num caderno de capa dura, pautado, e sentava-se à máquina sem ouvir nem poder dar um bom dia que fosse. Assim desenrolava-se o monótono e cansativo tempo. Se ao menos ela tivesse um ombro para soluçar suas mágoas, talvez as suas dores internas, prisioneiras, adiassem o que mais tarde seria inevitável. Continuou perdida. A supervisora seguia cumprindo a sua obrigação periódica, cotidiana, mas deixou de parar por mais tempo na máquina da costureira, disfarçando-se entre um esquecer involuntário e um consciente não querer parar. A partir daquele fato, a vistoria de todos os equipamentos passou a ser mais rápida; a inspetora parecia querer sair daquele setor fabril com a pressa de quem foge de si mesma. A costureira despertara na fiscal uma expressão dir-se-ia familiar. Com o passar dos dias, um abatimento envolveu o rosto martirizado há mais de meio século. Dias depois foi substituída por um senhor tão sofrido quanto se mostrara a funcionária na sua última inspeção. A costureira, não sabe como, encheu-se de coragem e perguntou ao homem de suspensórios e calça listrada se a senhora de quem ele assumira o lugar adoecera. Foi repreendida em voz alta e teve descontado o dia de trabalho. Perguntou a si mesma: por que sua vida teria de ser assim? Tentou encontrar uma resposta que não conseguiu expressar, e se emaranhou na costura dos uniformes grosseiros. Ao meio dia tocou a sirene chamando as operárias para o almoço, quase sempre um pedaço de carne boiando num caldo ralo, um pão dormido e uma pequena caneca de água. O inverno estava no fim. Não sei se a mudança da estação descontraiu, por minutos, as mulheres no refeitório. Nesse mesmo dia, a costureira da máquina número 35 levantou a cabeça e viu de relance a supervisora encostada à porta de saída das trabalhadoras. Estava sem o seu gorro habitual. Quando o olhar das duas se encontrou, houve um mal-estar simultâneo. A senhora agarrou-se na maçaneta da porta, foi acudida pelo vigia e levada ao ambulatório que ficava no lado direito do corredor por onde as funcionárias sairiam em fileira. A costureira deixou-se ficar para trás e com o corpo vacilante olhou para o interior da sala de atendimentos emergenciais, fechando os olhos, como que tentando afastar a certeza de que aquela senhora poderia ser a sua mãe. Uma débil espécie de simbiose as unira. Para as duas, a espera até o final da tarde pareceu longa demais. O corpo febril da nova funcionária desejava voltar para o cômodo empoeirado, abrigo de seu corpo franzino. Apressou o caminhar, subiu a velha escada rangente, entrou no quarto com a cabeça em desordem, o passado estampado à sua frente, o homem empurrando a sua mãe daquele mesmo aposento para um comboio, uma mulher puxando a criança pelo braço, colocando-a num ônibus sujo de barro, e o choro noturno da menina criada num orfanato. Com medo do escuro, acendeu a pequenina lâmpada que havia no quartinho. Deitou-se. Estava com febre. Disfarçada de enfermeira da fábrica, a supervisora entrou no prédio segurando uma caixinha de farmácia, com poucos objetos de primeiros socorros. Não demorou muito, a operária ouviu um barulho de botinas subindo a escada e uma batida surda à sua porta. Vinte e seis anos tinham separado mãe e filha. A guerra, terminada fazia algum tempo, sepultara com ela o seu pai e o seu irmão. 

Célia Coelho Bassalo 
Dez/Jan/ 2013

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Lembranças e histórias: Célia Bassalo desfeita em voo puro e quase mito

CAIO REISEWITZ

João Carlos Pereira

Se a quarta-feira de cinzas de 2015 precisasse de um único motivo para justificá-la, encontrou, na morte da professora Célia Coelho Bassalo, sua razão definitiva. O dia, que teve chuva de manhã, à tarde e à noite, parecia predestinado ao silêncio e à tristeza. Célia deixou este mundo numa quarta-feira que não queria existir e os que sobrevivemos a ela estamos cobertos com a mais triste e fina das cinzas da saudade.

Célia Bassalo não foi apenas uma das mulheres mais bonitas, refinadas, elegantes e cultas que o século XX ofereceu ao Pará. Era uma pessoa rara. Tantas qualidades, improváveis numa única e mesma criatura, poderiam dar a impressão de que a humanidade se lhe evaporara. Um engano: a enorme generosidade de uma vida inteira dedicada à família – a sua, lado do companheiro de uma existência inteira, o físico José Maria Filardo Bassalo, e dos filhos Ádria e Jô – e da de seus pais, dona Celina e professor Machado Coelho – transformou-a numa espécie de coluna central em torno da qual giravam os irmãos, os sobrinhos, os netos, os sobrinhos-netos e amigos sem conta. Se o amor em família possuía um eixo, entenda-se que ele se chamava Célia Coelho Bassalo.

Minha professora no curso de Letras e amiga por tantos anos, Célia me ensinou a amar a teoria da literatura e o “art nouveau”. Graças ao que com ela aprendi, consegui ocupar (indignamente, é claro, porque certas pessoas não podem ter substitutas – no máximo sucessores) a cadeira que pertenceu à nossa muito amada professora Albeniza de Carvalho e Chaves, na Universidade Federal do Pará. Foi desse tempo, escondido nos anos 70 do século passado, que surgiu uma amizade preciosa. As leituras essenciais e complementares, em francês e em português, os livros que não havia por aqui e que ela, bondosamente, me emprestava, o aprofundamento num ou noutro tema me aproximavam cada vez mais da professora, de sua(s) família(s), de sua casa. De meu coração profundamente entristecido – diria mesmo desolado – brota, ao lado da flor da saudade, a nascente de um rio chamado gratidão.

Provavelmente a maior estudiosa da estética “nouveau” no Brasil, Célia, às vezes, parecia um camafeu ou uma daquelas lindas figuras femininas que só se veem nas grandes peças decorativas do período que iluminou o mundo da “belle époque”. Essa luminosidade, nela tão natural, “sem mistura de escuridão”, como disse São Lucas, era uma marca de sua bondade; do farol que ajudou tanta gente – alunos, amigos, colegas de trabalho, familiares – a encontrar os caminhos da vida.

A quarta-feira triste que nos afastou do convívio de Célia Bassalo finalizou a dolorosa montagem do “barco de madeira construído no ar para a viagem do mito”, como cantou seu poeta Paulo Plínio Backer de Abreu. A “nau, feita de vento e força de um pensar antigo”, conduziu-a, poeticamente, para o colo do mais lindo dos anjos trazidos da Itália para Belém, cuja existência e importância só foram reveladas à cidade pela própria Célia, nos seus estudos sobre arte. A última peça do período registrada na alfândega do Pará e levada para o cemitério de Santa Isabel, onde embeleza um túmulo em frente à capela, tinha a figura de um ser angélico, com vistosas asas abertas, prontas para a viagem definitiva. Era o anjo da morte, que conduzia docemente no colo a alma de uma bela mulher. A delicadeza das formas remete, nessa hora de dor, à figura de Célia Bassalo, hoje “desfeita em voo puro e quase mito”, completaria Paulo Plínio, a caminho da luz.

A morte de Célia Bassalo, em todos os sentidos, seja para os que tiveram a chance de conviver com ela e amá-la, seja para a vida intelectual de Belém, possui a dimensão muito maior do que a de uma perda. É uma verdadeira devastação.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

O sentir e o pensar o tempo em três poemas líricos

O sentir e o pensar o tempo em três poemas líricos

Ao prof. Francisco Paulo do Nascimento Mendes (in memoriam)

Celia Coelho Bassalo
Profa. UFPA - aposentada
(agosto, 2010)

Tornou-se lugar-comum dizer que o homem, desde a antiguidade, sempre esteve ligado a reflexões sobre o tempo e suas mudanças. Abordar esse instigante tema é um fascínio que envolve as inquietantes mentes literárias ligadas à visão de mundo de várias épocas, sobretudo da Literatura Contemporânea. Vale salientar que tal estudo é extremamente complexo, pois se trata de um assunto abrangente envolvendo todas as áreas do conhecimento humano, mas a função do artista é a de criar a realidade circundante naquilo que ela tem, no caso, de universal: o tempo e suas mudanças.
No caso das poesias  estudadas a seguir, pode-se considerar que, às vezes, o sentir e o pensar, do eu lírico, desempenham papel fundamental com relação à fugacidade temporal, no momento em que esta se refere às transformações da figura humana, quer do ponto de vista físico quanto do psicológico.
É o tempo da experiência (re)velando-se, nos três primeiros poemas, não apenas como tempo da natureza, isto é, como tempo cíclico e astronômico, mas também como tempo histórico, a incidirem − todos − na sensibilidade artística e a refletirem as distintas e multifacetadas visões de mundo e de tempo, em que o eu poético como que se resigna à impossibilidade de deter o relógio do universo, que a todos se mostra inexorável
A intenção deste artigo é tratar o sentir o tempo em dois poemas, um de Sá de Miranda (1481-1558), outro de Luiz de Camões (1524 - 1580), respectivamente. Do como sentir o tempo, também escolhi o nosso Manuel Bandeira (1886-1968), um dos maiores poetas líricos brasileiros.
 Sá de Miranda,    o iniciador do Renascimento em Portugal – fato que marcou o início dos tempos modernos nesse país – foi o primeiro poeta a usar em terras lusitanas versosmaiores”, não substituindo as redondilhas, mas acrescentando também outra forma de poetar: o soneto. Isso foi possível aquando de seu regresso a Portugal em 1526, depois de um convívio com escritores e artistas italianos que o influenciaram grandemente. O fruto dessa viagem foi trazer ao país uma nova estética, introduzindo além do soneto, a canção, a sextina, as composições em tercetos e em oitavas e os versos de dez sílabas, afora várias outras composições poéticas.
Com seudoce estilo novo” descreve no primeiro verso do Soneto a seguir a constatação, de modo inusitado, da ausência de ventos e um calor intenso num luminoso dia.  
Sá de Miranda toma como base do poema sua visão de mundo – o mundo temporário –, e as transformações decorrentes do tempo cíclico, não apenas para meditar sobre a irregularidade das estações do ano, mas também para delinear um eu lírico amargurado ao observar a irregular mutação repentina da natureza, a previsível mutabilidade gradativa do ser humano e a incoercível impossibilidade de o eu lírico deter as suas próprias transformações. (no verso, grifo nosso)
                                                                                                                                                                                                                                                                                                    
Soneto

O sol é grande: caem co'a calma as aves,
Do tempo em tal sazão, que sói ser fria.
Esta água que de alto cai acordar-me-ia,
Do sono não, mas de cuidados graves.

Ó cousas todas vãs, todas mudaves,
Qual é tal coração que em vós confia?
Passam os tempos, vai dia trás dia,
Incertos muito mais que ao vento as naves.

Eu vira aqui sombras, vira flores,
Vi tantas águas, vi tanta verdura,
As aves todas cantavam de amores.

Tudo é seco e mudo; e, de mistura,
Também mudando-me eu fiz doutras cores.
E tudo o mais renova: isto é sem cura!

Fugindo um pouco ao tema, o introdutor da medida nova faz uma referência às grandes navegações impulsionadas pelas velas e que eram levadas a destinos incertos. Nos dois primeiros decassílabos da mesma quadra, destaca, com a interjeição, o sugerir de impressões doridas que envolvem a alma de um eu sublime por serem as coisas vãs, passíveis de modificações e não dignas de confiança.
Ligadas à experiência subjetiva, as aflições do bardo fazem-no sentir e viver o escoar de algo que se reflete nas modificações físicas e psicológicas por ele, bardo, sofridas. E é esse mesmo sujeito lírico, que presenciara várias transformações da natureza, das estações do ano com sombras, flores, águas, verdores, aves gorjeando amores e de seu natural e constante recomeçar.
Arrematando o poema com perfeição formal, equilíbrio, harmonia, e universalizando a nostalgia expressa no seu último terceto (portanto, no limiar da velhice), percebe o aflorar da sua dolorosa, amarga e sutil melancolia, ao verificar que a renovação da natureza não atinge o ser humano, pois este, com o passar do tempo, vai assumindo fisicamente novas cores – a palidez, por exemplo –, sugerindo, dessa forma, a perda irrecuperável do viço, da juventude, do frescor, daí o poeta dizer: isto é sem cura!
MMMuito recorrente na Renascença, o tema da mudança também tocou Luiz de Camões[1], que aproveitou estilística, filosoficamente e de modo intertextual os versos de Sá de Miranda Ó cousas todas vãs, todas mudaves para lastimar, sobretudo, as modificações verificadas nos seres humanos.
Embora em outro contexto e com uma visão diferente de mundo, Camões também lamenta a passagem inexorável do tempo com todas as suas mudanças, e assim como em Sá de Miranda, essas modificações são para pior, estabelecendo, dessa forma, uma correspondência entre ambos, inclusive quanto às transformações dos desejos, implicadas e continuamente negativas do ponto de vista pessoal. A mutabilidade do tempo, portanto,  está cantada de modo semelhante à melancolia do autor de Em tormentos crueis, tal sofrimento.
          Ratifique-se que o sentido do poema é um aproveitmento estilístico do soneto daquele compositor do final da Idade Média e dos primeiros cinquenta anos do Renascimento. Aqui, o autor de No mundo quis o Tempo que se achasse, afirma quetodo mundo é composto de mudança / Tomando sempre novas qualidades”, o que sugere, a meu ver, novas condições, posições, funções e, decerto, novas perspectivas dialéticas. Camões admite as características humanas poetizadas tristemente pelo eu lírico: desconfiança, desesperança, mágoas, tristes recordações, enfim, os desconcertos do mundo. Ora, um ser lírico com essas “qualidades” e com a polissemia desse termo, é um ser marcadamente atormentado pelas lembranças, daí dizer que com as mudanças ficam as mágoas na memória e as saudades  “do bem, se algum houve!”. Esse soneto faz lembrar Babel e Sião, poema inspirado no Salmo 136, “Super flumina Babylonis”, no qual os judeus, desterrados em Babilônia, choram o tempo em que viveram felizes em sua terra, Sião ou Jerusalém.  

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda como soía.

A passagem do tempo está clara em todo o soneto. No primeiro terceto, ao dizer que O tempo cobre o chão de verde manto, / Que coberto foi de neve fria, marca a implacável transformação do eu lírico no momento em que converte em choro o doce canto. No entanto, o espanto maior do poeta é Que não se muda como soía, isto é, como era hábito a mudança à época, por ser esta regular, porque em Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, o tempo transcorre, diariamente, num constante alterar-se de maneira assombrosa.
De Manuel Bandeira, pode-se dizer que não é possível afastar a experiência de vida da sua experiência poética, pois apesar de sua poesia ser de uma universalidade intensa, ardente e singela, ela não pode ser reduzida a acontecimentos biográficos, que se revelam matrizes de imagens, de emoções, de ritmos, transfigurados mistérios da criação. No poemaElegia no Verão”, o poeta lança mão do tropo português da “saudade evidenciando, com sinceridade, a lembrança sentida e nostálgica da infância. Reafirma, na sua linha poética, a presença das grandes inquietações sentidas com a passagem do tempo, porém com ternura ardente dor existencial, ao recordar o período em que era menino. Bandeira atribui ao tema da infância uma força humanizadora, uma espécie de metáfora obsedante que o acompanha desde os versos da mocidade. Isso fez com que eleum dos poetas mais líricos do Modernismo – retomasse o tema da melancolia contemplativa, da fugacidade das coisas, para criar sua Elegia de verão.
Esse pernambucano soube absorver com simplicidade o lirismo de formas múltiplas explorado pelos poetas modernos. Na elegia, embora cante a pureza do garoto inocente, permeada de nostalgia, o poeta também se adaptou à ironia, à crítica... tão ao gosto da estética de seu tempo. Daí porque  no segundo, terceiro e quinto versos da terceira estrofe ele critica a não importância dada pelo Patrimônio Histórico ao “Largo do Boticário”, com suas “caixas-d'água vermelhas de ferrugem”, largo que era um recanto bucólico do Rio de Janeiro, rodeado pela floresta e pelo Rio Carioca e com edificações neocoloniais.
Outra crítica feita por Bandeira diz respeito à mudança da ortografia da língua portuguesa, mesmo consciente de que toda língua é dinâmica, mutável, mas, no poema, o sujeito empírico é um conservador das coisas

Elegia de verão

"O Sol é grande. O coisas
 Todas vãs, todas mudaves!
 (Como esse "mudaves"
 Que hoje é "mudáveis
 "Que não rima com "aves".)

 O sol é grande. Zinem as cigarras
 Em laranjeiras.
 Zinem as cigarras: zino, zino, zino...
 Como se fossem as mesmas
 Que eu ouvi menino.

 Os verões de antigamente!
 Quando o Largo do Boticário
 Ainda poderia ser tombado.
 Carambolas ácidas, quentes de mormaço;
 Água morna das caixas-d'água vermelhas de ferrugem;
 Saibro cintilante...
 O sol é grande. Mas, ó cigarras que zinis.
 Não sois as mesmas que eu ouvi menino.
 Sois outras, não me interessais...

Deem-me as cigarras que eu ouvi menino".  

A melancolia de Bandeira, associada a um sentimento de trieteza, é cantada na elegia, na qual vêm à tona a sua tristeza e a vontade de proustianamente, trazer de volta a infância perdida, poetizada emInfância”, “Evocação do Recife”, “Profundamente”, “Na Rua do Sabão”, “Balãozinhos”... Trata-se de uma fase mágica da infância do poeta, um locus amenus em que a criança se faz presente nos poemas que tentam recriar a experiência da meninice. É por meio desses textos poéticos que se estende uma ponte voltada ao sujeito passado; entretanto, as cigarras e o seu zinir cheio de musicalidade encantatória – esta uma influência do melodioso movimento Simbolista – não têm o poder de iludir o poeta quanto à fuga do tempo, daí não ser possível possuí-las no presente, pois elas podem  “ressoar” no ouvido de um sujeito adulto e consciente de que a fase de menino “foi muito tempo, como ele mesmo diz em sua
Conforme se observou, diante dessas variadas maneiras de sentir e/ou pensar o tempo e suas mudanças, na poesia esses estados d’alma são extremamente complexossobretudo o sentir/pensar o tempopara se explicarem num pequeno artigo. Por isso, é bom recordar o dilema de Santo Agostinho nas suasConfissões”: O que, então, é o tempo? Se ninguém me pergunta, eu o sei; se desejo explicá-lo àquele que pergunta, não o sei.”


BIBLIOGRAFIA

1. BANDEIRA, Manuel. Estrela da Vida Inteira. Rio de Janeiro, José Olympio, 1966
2. BÍBLIA SAGRADA. Traduzida da vulgata e anotada pelo padre Matos Soares. São Paulo, Paulinas, 1954, 6a edição,
3. CAMÕES, Luís de. Obras completas. Lisboa, Sá da Costa, 1962, II vols. 3a edição.
4. HANS, Meyerhoff.  O tempo na Literatura. São Paulo, McGraw do Brasil, 1976 (trad. de Myriam Campello, revisão técnica de Afrânio Coutinho.)
5.  MIRANDA, Francisco Sá de. Obras Completas. Vol. I, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1942. Texto fixado, notas e prefácio pelo prof. M. Rodrigues Lapa. 2a edição.
6.  SANTO AGOSTINHO. Les confessions de Saint Augustin.  Paris, Garnier, 1921

WEBGRAFIA

1.BR&biw=1659&bih=818&gbv=2&tbs=isch%3A1&sa=1&q=antigo+largo+do+botic%C3%A1rio+rj&btnG=Pesquisar&aq=f&aqi=&aql=&oq=&gs_rfai= (julho, 2010)




[1] Camões escreveu versos tanto na medida velha (cinco ou sete sílabas métricas) quanto na medida nova cujos sonetos constituem a parte mais conhecida da lírica camoniana (dez sílabas métricas)