segunda-feira, 7 de outubro de 2013

O sentir e o pensar o tempo em três poemas líricos

O sentir e o pensar o tempo em três poemas líricos

Ao prof. Francisco Paulo do Nascimento Mendes (in memoriam)

Celia Coelho Bassalo
Profa. UFPA - aposentada
(agosto, 2010)

Tornou-se lugar-comum dizer que o homem, desde a antiguidade, sempre esteve ligado a reflexões sobre o tempo e suas mudanças. Abordar esse instigante tema é um fascínio que envolve as inquietantes mentes literárias ligadas à visão de mundo de várias épocas, sobretudo da Literatura Contemporânea. Vale salientar que tal estudo é extremamente complexo, pois se trata de um assunto abrangente envolvendo todas as áreas do conhecimento humano, mas a função do artista é a de criar a realidade circundante naquilo que ela tem, no caso, de universal: o tempo e suas mudanças.
No caso das poesias  estudadas a seguir, pode-se considerar que, às vezes, o sentir e o pensar, do eu lírico, desempenham papel fundamental com relação à fugacidade temporal, no momento em que esta se refere às transformações da figura humana, quer do ponto de vista físico quanto do psicológico.
É o tempo da experiência (re)velando-se, nos três primeiros poemas, não apenas como tempo da natureza, isto é, como tempo cíclico e astronômico, mas também como tempo histórico, a incidirem − todos − na sensibilidade artística e a refletirem as distintas e multifacetadas visões de mundo e de tempo, em que o eu poético como que se resigna à impossibilidade de deter o relógio do universo, que a todos se mostra inexorável
A intenção deste artigo é tratar o sentir o tempo em dois poemas, um de Sá de Miranda (1481-1558), outro de Luiz de Camões (1524 - 1580), respectivamente. Do como sentir o tempo, também escolhi o nosso Manuel Bandeira (1886-1968), um dos maiores poetas líricos brasileiros.
 Sá de Miranda,    o iniciador do Renascimento em Portugal – fato que marcou o início dos tempos modernos nesse país – foi o primeiro poeta a usar em terras lusitanas versosmaiores”, não substituindo as redondilhas, mas acrescentando também outra forma de poetar: o soneto. Isso foi possível aquando de seu regresso a Portugal em 1526, depois de um convívio com escritores e artistas italianos que o influenciaram grandemente. O fruto dessa viagem foi trazer ao país uma nova estética, introduzindo além do soneto, a canção, a sextina, as composições em tercetos e em oitavas e os versos de dez sílabas, afora várias outras composições poéticas.
Com seudoce estilo novo” descreve no primeiro verso do Soneto a seguir a constatação, de modo inusitado, da ausência de ventos e um calor intenso num luminoso dia.  
Sá de Miranda toma como base do poema sua visão de mundo – o mundo temporário –, e as transformações decorrentes do tempo cíclico, não apenas para meditar sobre a irregularidade das estações do ano, mas também para delinear um eu lírico amargurado ao observar a irregular mutação repentina da natureza, a previsível mutabilidade gradativa do ser humano e a incoercível impossibilidade de o eu lírico deter as suas próprias transformações. (no verso, grifo nosso)
                                                                                                                                                                                                                                                                                                    
Soneto

O sol é grande: caem co'a calma as aves,
Do tempo em tal sazão, que sói ser fria.
Esta água que de alto cai acordar-me-ia,
Do sono não, mas de cuidados graves.

Ó cousas todas vãs, todas mudaves,
Qual é tal coração que em vós confia?
Passam os tempos, vai dia trás dia,
Incertos muito mais que ao vento as naves.

Eu vira aqui sombras, vira flores,
Vi tantas águas, vi tanta verdura,
As aves todas cantavam de amores.

Tudo é seco e mudo; e, de mistura,
Também mudando-me eu fiz doutras cores.
E tudo o mais renova: isto é sem cura!

Fugindo um pouco ao tema, o introdutor da medida nova faz uma referência às grandes navegações impulsionadas pelas velas e que eram levadas a destinos incertos. Nos dois primeiros decassílabos da mesma quadra, destaca, com a interjeição, o sugerir de impressões doridas que envolvem a alma de um eu sublime por serem as coisas vãs, passíveis de modificações e não dignas de confiança.
Ligadas à experiência subjetiva, as aflições do bardo fazem-no sentir e viver o escoar de algo que se reflete nas modificações físicas e psicológicas por ele, bardo, sofridas. E é esse mesmo sujeito lírico, que presenciara várias transformações da natureza, das estações do ano com sombras, flores, águas, verdores, aves gorjeando amores e de seu natural e constante recomeçar.
Arrematando o poema com perfeição formal, equilíbrio, harmonia, e universalizando a nostalgia expressa no seu último terceto (portanto, no limiar da velhice), percebe o aflorar da sua dolorosa, amarga e sutil melancolia, ao verificar que a renovação da natureza não atinge o ser humano, pois este, com o passar do tempo, vai assumindo fisicamente novas cores – a palidez, por exemplo –, sugerindo, dessa forma, a perda irrecuperável do viço, da juventude, do frescor, daí o poeta dizer: isto é sem cura!
MMMuito recorrente na Renascença, o tema da mudança também tocou Luiz de Camões[1], que aproveitou estilística, filosoficamente e de modo intertextual os versos de Sá de Miranda Ó cousas todas vãs, todas mudaves para lastimar, sobretudo, as modificações verificadas nos seres humanos.
Embora em outro contexto e com uma visão diferente de mundo, Camões também lamenta a passagem inexorável do tempo com todas as suas mudanças, e assim como em Sá de Miranda, essas modificações são para pior, estabelecendo, dessa forma, uma correspondência entre ambos, inclusive quanto às transformações dos desejos, implicadas e continuamente negativas do ponto de vista pessoal. A mutabilidade do tempo, portanto,  está cantada de modo semelhante à melancolia do autor de Em tormentos crueis, tal sofrimento.
          Ratifique-se que o sentido do poema é um aproveitmento estilístico do soneto daquele compositor do final da Idade Média e dos primeiros cinquenta anos do Renascimento. Aqui, o autor de No mundo quis o Tempo que se achasse, afirma quetodo mundo é composto de mudança / Tomando sempre novas qualidades”, o que sugere, a meu ver, novas condições, posições, funções e, decerto, novas perspectivas dialéticas. Camões admite as características humanas poetizadas tristemente pelo eu lírico: desconfiança, desesperança, mágoas, tristes recordações, enfim, os desconcertos do mundo. Ora, um ser lírico com essas “qualidades” e com a polissemia desse termo, é um ser marcadamente atormentado pelas lembranças, daí dizer que com as mudanças ficam as mágoas na memória e as saudades  “do bem, se algum houve!”. Esse soneto faz lembrar Babel e Sião, poema inspirado no Salmo 136, “Super flumina Babylonis”, no qual os judeus, desterrados em Babilônia, choram o tempo em que viveram felizes em sua terra, Sião ou Jerusalém.  

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda como soía.

A passagem do tempo está clara em todo o soneto. No primeiro terceto, ao dizer que O tempo cobre o chão de verde manto, / Que coberto foi de neve fria, marca a implacável transformação do eu lírico no momento em que converte em choro o doce canto. No entanto, o espanto maior do poeta é Que não se muda como soía, isto é, como era hábito a mudança à época, por ser esta regular, porque em Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, o tempo transcorre, diariamente, num constante alterar-se de maneira assombrosa.
De Manuel Bandeira, pode-se dizer que não é possível afastar a experiência de vida da sua experiência poética, pois apesar de sua poesia ser de uma universalidade intensa, ardente e singela, ela não pode ser reduzida a acontecimentos biográficos, que se revelam matrizes de imagens, de emoções, de ritmos, transfigurados mistérios da criação. No poemaElegia no Verão”, o poeta lança mão do tropo português da “saudade evidenciando, com sinceridade, a lembrança sentida e nostálgica da infância. Reafirma, na sua linha poética, a presença das grandes inquietações sentidas com a passagem do tempo, porém com ternura ardente dor existencial, ao recordar o período em que era menino. Bandeira atribui ao tema da infância uma força humanizadora, uma espécie de metáfora obsedante que o acompanha desde os versos da mocidade. Isso fez com que eleum dos poetas mais líricos do Modernismo – retomasse o tema da melancolia contemplativa, da fugacidade das coisas, para criar sua Elegia de verão.
Esse pernambucano soube absorver com simplicidade o lirismo de formas múltiplas explorado pelos poetas modernos. Na elegia, embora cante a pureza do garoto inocente, permeada de nostalgia, o poeta também se adaptou à ironia, à crítica... tão ao gosto da estética de seu tempo. Daí porque  no segundo, terceiro e quinto versos da terceira estrofe ele critica a não importância dada pelo Patrimônio Histórico ao “Largo do Boticário”, com suas “caixas-d'água vermelhas de ferrugem”, largo que era um recanto bucólico do Rio de Janeiro, rodeado pela floresta e pelo Rio Carioca e com edificações neocoloniais.
Outra crítica feita por Bandeira diz respeito à mudança da ortografia da língua portuguesa, mesmo consciente de que toda língua é dinâmica, mutável, mas, no poema, o sujeito empírico é um conservador das coisas

Elegia de verão

"O Sol é grande. O coisas
 Todas vãs, todas mudaves!
 (Como esse "mudaves"
 Que hoje é "mudáveis
 "Que não rima com "aves".)

 O sol é grande. Zinem as cigarras
 Em laranjeiras.
 Zinem as cigarras: zino, zino, zino...
 Como se fossem as mesmas
 Que eu ouvi menino.

 Os verões de antigamente!
 Quando o Largo do Boticário
 Ainda poderia ser tombado.
 Carambolas ácidas, quentes de mormaço;
 Água morna das caixas-d'água vermelhas de ferrugem;
 Saibro cintilante...
 O sol é grande. Mas, ó cigarras que zinis.
 Não sois as mesmas que eu ouvi menino.
 Sois outras, não me interessais...

Deem-me as cigarras que eu ouvi menino".  

A melancolia de Bandeira, associada a um sentimento de trieteza, é cantada na elegia, na qual vêm à tona a sua tristeza e a vontade de proustianamente, trazer de volta a infância perdida, poetizada emInfância”, “Evocação do Recife”, “Profundamente”, “Na Rua do Sabão”, “Balãozinhos”... Trata-se de uma fase mágica da infância do poeta, um locus amenus em que a criança se faz presente nos poemas que tentam recriar a experiência da meninice. É por meio desses textos poéticos que se estende uma ponte voltada ao sujeito passado; entretanto, as cigarras e o seu zinir cheio de musicalidade encantatória – esta uma influência do melodioso movimento Simbolista – não têm o poder de iludir o poeta quanto à fuga do tempo, daí não ser possível possuí-las no presente, pois elas podem  “ressoar” no ouvido de um sujeito adulto e consciente de que a fase de menino “foi muito tempo, como ele mesmo diz em sua
Conforme se observou, diante dessas variadas maneiras de sentir e/ou pensar o tempo e suas mudanças, na poesia esses estados d’alma são extremamente complexossobretudo o sentir/pensar o tempopara se explicarem num pequeno artigo. Por isso, é bom recordar o dilema de Santo Agostinho nas suasConfissões”: O que, então, é o tempo? Se ninguém me pergunta, eu o sei; se desejo explicá-lo àquele que pergunta, não o sei.”


BIBLIOGRAFIA

1. BANDEIRA, Manuel. Estrela da Vida Inteira. Rio de Janeiro, José Olympio, 1966
2. BÍBLIA SAGRADA. Traduzida da vulgata e anotada pelo padre Matos Soares. São Paulo, Paulinas, 1954, 6a edição,
3. CAMÕES, Luís de. Obras completas. Lisboa, Sá da Costa, 1962, II vols. 3a edição.
4. HANS, Meyerhoff.  O tempo na Literatura. São Paulo, McGraw do Brasil, 1976 (trad. de Myriam Campello, revisão técnica de Afrânio Coutinho.)
5.  MIRANDA, Francisco Sá de. Obras Completas. Vol. I, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1942. Texto fixado, notas e prefácio pelo prof. M. Rodrigues Lapa. 2a edição.
6.  SANTO AGOSTINHO. Les confessions de Saint Augustin.  Paris, Garnier, 1921

WEBGRAFIA

1.BR&biw=1659&bih=818&gbv=2&tbs=isch%3A1&sa=1&q=antigo+largo+do+botic%C3%A1rio+rj&btnG=Pesquisar&aq=f&aqi=&aql=&oq=&gs_rfai= (julho, 2010)




[1] Camões escreveu versos tanto na medida velha (cinco ou sete sílabas métricas) quanto na medida nova cujos sonetos constituem a parte mais conhecida da lírica camoniana (dez sílabas métricas)