quarta-feira, 11 de março de 2020

Contos inacabados IV


Meu tio camelô 

Na rua em que a menina morava — defronte de uma praça ­— morava uma quantidade enorme de crianças. A idade variava muito, porém os mais velhos ainda não tinham chegado à adolescência. A essa turma, juntavam-se outros garotos e garotas da redondeza. Por isso, o quarteirão era sempre muito animado. Imaginem que tinham pessoas conhecidas apenas pelo apelido, a exemplo do Sumano. Era assim chamado por todos, inclusive pela própria irmã. Mais tarde, a menina veio a saber que se tratava da expressão: “seu mano”, correspondente a amigo, camarada, companheiro, colega... 

Na vizinhança existia uma fábrica de engarrafar vinho e fazer água gasosa, isto é, água mineral que contém gás carbônico dissolvido. Compravam-se garrafas artisticamente trabalhadas, próprias para essa última, chamadas sifão. Num fim de tarde, onde as pessoas estavam sentadas em cadeiras proseando, um alvoroço se estabeleceu na porta do estabelecimento. Um portador deixou uma carta para a mulher do proprietário do comércio. A carta foi passada de mão em mão à família dos moradores do dono, que não eram poucos. A garotada, brincando na calçada, ficou curiosa e procurou a filha mais velha do senhor para saber o motivo da euforia. A menina respondeu que ia chegar um parente para visitar a família e que não morava na cidade há muitos anos. Era muito querido por todos por ser o mais novo dos irmãos, por ser conversador e por estar sempre de bom humor. O movimento da casa não parou depois do recebimento da carta. De vez em quando, durante quase duas semanas, chegavam parentes e entravam na casa ao lado do comércio onde morava a família. A menina, muito curiosa, queria saber o que iam fazer. Chamou a amiga e perguntou qual o motivo daquelas visitas não habituais. E teve a explicação. Eram parentes e pessoas que sabiam também fazer doces e certas comidas que não careciam guardar na geladeira para sua conservação. As moradoras da casa eram também exímias confeiteiras. Numa das noites, a curiosa entrou na casa e foi até a sala de jantar. Lá encontrou várias mulheres cortando papel de seda colorido para embalar doces e salgadinhos. As cores variadas davam à mesa um aspecto agradável de se ver. Às nove horas da noite, a mãe veio chamar a abelhuda para dormir. 

Até que enfim atracou no porto da cidade um navio a vapor que fazia viagem de Norte a Sul do país. Dele desceu o parente tão esperado trazendo consigo duas maletas, uma de couro e outra de madeira. Estava de calça escura, camisa e paletó claros. Já tinha tirado a gravata, que jogara sobre os ombros. Como já era de noite quando o viajante chegou à casa da família, a menina não chegou a ver as feições do homem. Esse motivo deve-se ao fato de a luz elétrica ser muito fraca, daí ser chamada pelo povo de tição. A parentela estava toda reunida na calçada e novo alvoroço se formou; era mais quem queria abraçar o recém-chegado, que descera de um automóvel de praça com um dos moradores da casa. Depois de falar com a turma, todos entraram e a rua voltou a normal: crianças brincando e outros vizinhos conversando na calçada em cadeiras de balanço. 

Como o mês de julho era de férias escolares, cedo a intrometida já estava na rua esperando para ver se o viageiro aparecia. Nada o fez levantar da cama cedo. A amiga disse à companheira que no outro dia, pela manhã, o tio camelô, chamado assim pela família da vizinha, iria sair para trabalhar. Essa resposta causou um certo espanto à menina; primeiro porque ela não sabia o que era camelô, segundo por que ele sairia para trabalhar se viera, pensou a jovenzinha, para visitar a família. A menina ficou intrigada, mas deixou para lá essas questões. No outro dia, lá pelas nove e meia, a inquieta menina estava à porta esperando a saída do visitante que saiu de casa vestindo terno de gabardine cor de rosa, camisa branca, gravata listrada de branco e azul marinho, chapéu panamá e um par de sapatos de verniz branco com a ponta e o calcanhar pretos. Já estava carregando a maleta de madeira aberta e uma tira de pano passada pelo pescoço, o que segurava a pequena mala encostada à barriga daquele homem. A intrometida menina correu para ver o que tinha dentro do malote com várias divisões. Tomou essa de decisão, porque a vizinha estava ao lado do tio remexendo uns pregadores coloridos de cabelo. Os olhos da abelhuda correram pelo que tinha dentro daquele malote. Em grampos, pequenos espelhos, pentes, travessinhas para prender cabelos, uns maços de cabelo enrolado, compacto, que as mulheres usavam para fazer penteados semelhantes aos utilizados pelas artistas de cinema, de teatros de variedades, além de outras bugigangas mais. O homem atravessou a praça e a garota voltou para casa desiludida. Por quê?, nunca se soube. As aulas foram retomadas e, como as crianças ficavam na escola em tempo integral, o camelô foi esquecido pela investigadora; ela não perguntou mais por ele. Também não soube que fim ele levou. 

Anos mais tarde, a agora adolescente descobriu, para sua grande decepção, que camelô era um vendedor ambulante de quinquilharias e não uma espécie de figura importante pelo seu trajar, resquício da belle époque, vulto lendário como a então criança pensava.

Célia Coelho Bassalo

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