Um Natal na casa da senhora D´y
Era Natal e chovia. Como acontecia todos os anos, desde novembro a "Árvore de Natal" era montada. Havia todo um ritual para isso, a começar de onde o pinheiro artificial era guardado ao final das festas a ser comemoradas — um pequeno sótão, onde se depositavam antigas recordações e um álbum de couro que não se folheava há anos, pois a chave oxidara e se partira dentro da fechadura. Ali, diziam antigas pessoas conhecidas, estava toda a história da família que viera de um país cuja procedência a genealogia da senhora D´y intencionalmente quisera esquecer.
Há mais de sessenta anos, um canto da casa, abrigava a árvore, e quando esta era desmanchada um gnomo de mármore, ocupava o seu lugar, durante dez meses. Colocado esse símbolo natalino na sala, o anão era carregado para o centro de um canteiro no jardim. Os atuais moradores da mansão acreditavam ser aquela pequena e feia criatura representante de um espírito que habitara o interior da Terra guardando a fortuna dos ancestrais da casa e, em tempos idos, após ascender à superfície, distribuiu a riqueza aos antigos membros da estirpe. Quando quis retornar ao seu lugar de origem, fora impedido por outros espíritos que ali naquele pedaço de chão o petrificaram. Antes de retornar àquela pequena porção de terreno, era tradição da casa arrancar o mato, revolver a terra e plantar novas mudas de roseiras. Esse hábito, diziam, além de manter o vínculo sutil com a tradição e com a terra, tornava as plantas mais viçosas quando a primavera chegasse.
Estando o pinheiro no seu devido e esconso lugar, ao lado de uma escada de madeira meio escura, iniciava-se a decoração. Tudo na árvore era concebido artesanalmente. As bolas eram feitas de lãs coloridas; os anjinhos, minúsculos meninos ou meninas alados, cujos vestidos de tecido quadriculado, ainda possuíam um desgastado e antigo brilho. As asas eram de penas brancas e os sapatinhos de um couro azul e delicado; os outros enfeites como as frutas, eram também de fazenda, matizada ou não. Deixada por último, ficava a iluminação feita com lâmpadas de uma só cor e transparentes, o que mostrava a árvore e a casa nos seus estados de velhice. Todos os adornos mostravam-se desbotados assim como a pintura das paredes com desenhos de leve e variada folhagem.
Entre o portão de entrada e a porta principal havia uns poucos passos; logo em seguida, no alto de uma escada de mármore, existia um largo patamar coberto onde uma figura esguia de homem aguardava os convidados e os encaminhava a um compartimento anterior à sala principal. Ali, esses convidados acomodavam-se em confortáveis e antigos móveis de madeira e almofadados de veludo cinza. Eram poucos, e sempre as mesmas pessoas que anualmente se reuniam naquela noite para a ceia. Começaram a chegar por volta do início da noite, pois o jantar era servido às vinte e uma horas, dada a idade dos convivas já ter ultrapassado muito mais de meio século. Vinham o médico da família — sujeito alegre do grupo —, pessoa humana e caridosa, que mantinha um pequeno asilo para idosos abandonados ao relento. Era solteiro; o tabelião, um homem branco, avermelhado, boca larga e barrigudo; um poeta, sempre comedido e um pintor, este responsável pelos retratos de alguns ancestrais da casa feitos em óleo sobre tela. Esses três senhores estavam acompanhados de suas respectivas mulheres, vestidas com tecidos grossos e de maneira sóbria para a noite fria e chuvosa de vinte e quatro de dezembro.
Quando os últimos convidados chegaram, uma governanta vetusta, de tez muito branca, aparentando ser uma pessoa ríspida, foi anunciar à dona da casa de que todos os vindos para o encontro já se achavam presentes. O comparecimento das únicas remanescentes da família, a anfitriã e com essa uma sobrinha, que a dona da casa adotara desde menina, fechou-se o número dos que iriam compor a mesa na sala seguinte.
Antes do jantar, serviram uns chás de sabores diferentes, muito ao gosto dos presentes. As histórias acumuladas durante o ano foram iniciadas pelo tabelião, que à medida que as narrava eram recebidas com risos; em seguida, o poeta tirou do bolso da casaca uns papéis e recitou seus poemas escolhidos. Um deles foi criado para festejar aquele Natal; foi muito aplaudido pelos ouvintes. O pintor desenrolou uma tela. Era o retrato da sobrinha, que na hora da troca de mimos, iria oferecer à tia para compor a galeria familiar dos demais retratados. O último dos amigos a se manifestar foi o médico. Contou uma história hilária corando a face das senhoras. Essas abriram seus antigos leques de renda e cobriram parcialmente os rostos envergonhados. Quem esboçou um sorriso foi a sobrinha, logo repreendida pelo olhar severo da tia.
O jantar foi servido na hora marcada. Havia pouca variedade de pratos, eram de aves já cortadas em pequenos pedaços finos, como fina era a porcelana, pintada à mão, em que foram oferecidos. Um dos pratos preferidos com temperos acre-doces, que davam à comida uma tonalidade meio avermelhada, agradou aos comensais, daí ser repetido por quase todos os presentes. O acompanhamento, tão perfeito esteticamente quanto a variedade de sabores das aves dava pena de ser desmanchados pelas colheres de prata. A mesa era longa e em várias cadeiras não havia ninguém sentado. Pertenciam, decerto, a ex-convivas já finados e aos parentes desaparecidos pela idade avançada, haja vista os rostos dos retratados; alguns mais enrugados que os outros. Nas pinturas emolduradas em madeira com folhas de ouro, esculpidas por delicadas mãos artísticas, sobressaíam flores suaves, querubins e folhas de acanto. Todos os retratos estavam pendurados por compridos e retorcidos fios de seda.
Ao jantar, seguiu-se a farta sobremesa apresentada de maneira primorosa tanto quanto aquele. Era composta de pequenos doces coloridos e de uma leveza aparente e gustativa. Antes de servirem-se, fez-se uma oração de agradecimento; todos baixaram as cabeças em sinal de respeito, acompanhados ao piano por uma das belas composições de Debussy tocada com delicada emoção pela sobrinha de miss D´y.
Ao final, voltaram para a antessala, conversaram mais um pouco a respeito do belo Natal e despediram-se com um abraço longo e demorado. Nos olhos rolaram lágrimas discretas, pois não sabiam se os seus lugares, à mesa, estariam vazios no próximo ano.
Célia Coelho Bassalo
17 07 2013
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