segunda-feira, 2 de maio de 2011

Mário de Andrade no Pará, os sucessos e documentos da viagem e algumas considerações sobre o modernismo

CÉLIA COELHO BASSALO e JOAQUIM-FRANCISCO COELHO



Dá pano pra muita manga a história da viagem de Mário de Andrade à Amazônia, em 1927, de que a parada obrigatória em Belém do Pará veio a constituir fascinante capítulo. Tão fascinante, de fato, mas igualmente tão ignorado, que não seria talvez fortuito, à luz do noticiário da imprensa belenense da época, reconstituí-lo no conjunto e no detalhe, retraçando os passos do poeta na capital do Pará. Tudo é matéria à curiosidade dos biógrafos, e foi pensando neles, menos que nos professores e críticos, de literatura, que resolvemos alinhavar as considerações abaixo.


A rigor, a aventura amazônica de Mário começa a 6 de abril de 1927, quando, de São Paulo, ele anuncia em carta a Manuel Bandeira: “Creio que vou me embora pro norte mês que vem, numa bonitíssima duma viagem. Dona Olívia faz tempo que vinha planejando uma viagem pelo Amazonas a dentro. E insistia sempre comigo para que fosse no grupo. Eu ia resistindo, resistindo e amolecendo também. Afinal, quando quase tudo pronto, resolvi ceder mandando a merda esta vida de merda. Vou também. Isto é, ainda não sei bem se vou, só falta saber o preço da viagem. Se ficar aí por uns quatro contos, vou, se ficar pra cima de cinco não vou. Tenho de emprestar dinheiro pra ir e isto vai me deixar a vida bem difícil depois e os projetos no tinteiro”. E mais adiante, na mesma carta, detalha o projeto, e até o trajeto, da romaria: ”Puxa! creio que nem contei pra você por onde vai ser a nossa viagem. É melhor mesmo do que falar noutras coisas. Vamos pelo Lóide Brasileiro parando de porto em porto até Manaus. De lá subimos o Amazonas já com tudo determinado pelo Geraldo Rocha pra pararmos em todas as partes interessantes, continuamos pelo Madeira e vamos parar na Bolívia. Depois não sei como é a volta, sei que tomamos a Madeira-Mamoré até parece que Guaiara (sic, por Guajará) Mirim e depois não sei mais nada. Vamos D. Olívia, Paulo Prado, o Afonso de Taunay e parece que mais uma pessoa”. E conclui, já arquitetando planos para a volta ao Sul: “Como você vê as perspectivas são as melhores deste mundo. Peço quatro meses de férias. Parece que a viagem dura três. Se durar e achar jeito, na volta me desligo da comitiva pra parar um pouco mais com o Cascudinho, em Natal, e no Recife e na Bahia. Isto porém está muito problemático. Aliás a viagem toda pra mim...(1)

Se a viagem ficou ou não acima de quatro contos, e se o poeta encontrou enfim quem lhe emprestasse o dinheiro, eis a questão. O que já não se questiona, porém, é a partida para o norte, cinco dias depois desta carta, sendo de salientar que será como secretário particular de D. Olívia que vai Mário aparecer, logo mais, nas manchetes da imprensa de Belém. Vale igualmente adiantar, a título de esclarecimento e correção de fatos, que nem Paulo Prado nem Afonso de Taunay participaram da aventura. Com efeito, nenhum dos dois escritores consta da lista de passageiros fornecida pelo Loide aos jornais belenenses do tempo, os quais apenas registram, além de D. Olívia e Mário, as três outras pessoas, todas por sinal mulheres, que integraram no final das contas a caravana: Madalena e Helena Nogueira e Dulce Amaral, filha mocinha de Tarsila do Amaral. Esta Dulce, aliás, Paulo Duarte confundiria com a própria pintora ao referir-se, de passagem, à expedição de 27 no seu Mário de Andrade por ele mesmo (2). A julgar pelas mencionadas listas de passageiros, o grupo saiu do Rio e não de Santos, e levou oito dias para chegar a Belém. Escalando na Bahia, em Pernambuco e no Ceará, viajaram todos em primeira classe, e o nome do navio do Loide que os trouxe, Pedro I, não soaria mal aos ouvidos do modernista que, cinco anos antes, em Paulicéia Desvairada, alinhara com as “juvenilidades auriverdes” no oratório profano “As Enfibraturas do Ipiranga”. Tem lá o seu sabor, principalmente quando se preserva a grafia da época, a descrição que da entrada do barco na baía de Guajará, em Belém, dá-nos a “Folha do Norte” de 20 de maio de 1927, na coluna “Mares e Rios”: “Ingressando no quadro de franquia pelo canal de dentro da Porto of Pará, foi até em frente ao Castello, de onde demandou o cais, atracando às onze horas, em frente ao galpão número 3. Nesses (sic, por nesse) momentos, entre o agitar dos passageiros, preparando-se para desembarcar, se fazia ouvir, executando vários trechos de música, o afinado “tercetto” de bordo. No cais, suportando o forte calor causado pelo verão, que se aproxima, viam-se inúmeras pessoas aguardando o momento de abraçar os que chegavam. Nas pesquisas que fizemos a bordo entre os passageiros, procurando saber das novidades, fomos informados da satisfação que entre todos reinava pela ótima viagem que vinha de fazer o “Pedro I”, cuja oficialidade a todos soube cativar com as suas atenções”.


Eis a citação a que nos referimos: ”No ano anterior (1927), Mário de Andrade, na companhia de D. Olívia Penteado, de Tarsila e sua filha Dulce e outros, havia realizado uma longa viagem pela Amazônia, subindo o grande rio até Iquitos. Trouxe um mundo de notas sobre costumes, folclore musical e observações pessoais. Esta viagem abriu-lhe as portas do entusiasmo pelo norte e pelo nordeste do Brasil, o que motivou outras idas posteriores àquelas paragens e consolidou o seu amor brasileiro por essa imensa e heróica região, onde o Brasil toma aspectos originais inteiramente seus. Macunaíma acolheu, depois de pronto, algumas influências nortistas e nordestinas. Sim, algumas apenas,porque quando se deu a viagem pelo Amazonas, Macunaíma,já estava pronto para a tipografia”. Corretas no conjunto, principalmente no que tange ao Impacto da aventura amazônica na pessoa e na obra de Mário, as observações de Paulo Duarte pedem não obstante duas retificações, além da que já fizemos em relação à Tarsila. Pra começar, não é certo estivesse Macunaíma pronto para a tipografia, quando se deu a viagem ao Amazonas. Pois Mário não afirmou a Bandeira, em carta de 4-10-1927 (op.cit.d.175), “estou passando a limpo o Macunaíma?” Segundo, o autor desta rara rapsódia nunca mais retornou à Amazônia, embora ansiosamente o desejasse, a ponto de recorrer, para tanto, à influência de amigos. Contou-nos o compositor Waldemar Henrique, uma dessas amizades, que, quando funcionário do DEIP em Belém, recebera de Mário mais de uma carta neste sentido, nas quais o poeta indagava da possibilidade de retornar a Belém mediante interferência da imprensa ou do governo, fato que infelizmente jamais ocorreu.


Nesta cena de cais, digna do Jorge Amado de Os Velhos Marinheiros, apraz imaginarmos o carão alegre do Mário músico, rindo com todos os dentes do “tercetto” de bordo, com certeza menos afinado do que sugere a ingenuidade do trêfego repórter. Enfim, importa é que o escritor e a comitiva encontraram, ao desembarcar, tratamento de primeira, recebidos que foram pelos maiorais da terra, destacando-se entre eles o heráldico dr. Samuel Mac-Dowell, cuja árvore genealógica Ricardo Borges levantou com esmero nos seus Vultos Notáveis do Pará (Belém, Conselho Estadual de Cultura, 1970). D. Olívia foi mesmo conduzida ao famoso Grande Hotel no auto governamental do então presidente do Estado, dr. Dyonísio Bentes, que quatro dias depois regalaria os visitantes com um “delicado ágape”, no qual o próprio dr. Dyonísio, em “ligeira oração”, testemunhou o seu apreço e o de sua família à distincta “touriste” paulista” (“Notas Mundanas”, “Folha do Norte” , 25-5-1927). Qual seria de esperar, D. Olívia agradeceu a gentileza do governante através de Mário de Andrade, o tão certo secretário, que então improvisou um discurso referido mais tarde em carta a Bandeira: “Imagine porém que até um discurso de improviso tive de fazer respondendo a uma saudação do Dionísio Bentes, presidente do Pará. Sou incapaz de improvisar. Falei um quarto de dúzia de coisas familiares a me assentei tremendo feito bobo. Pelo menos asneira creio que não saiu nenhuma não”. (3)
que ela “gozava” o poeta e músico maluco, de todas as formas possíveis” (p 26). Evidentemente, ao escrever o seu opúsculo, Castello Branco.


Não se julgue, entretanto, das recepções e menções honrosas a D. Olívia, que Mário jazia na sombra, encarado apenasmente como ajudante de ordens da ilustre dama, qual sugeriu há coisa de um ano o jornalista Carlos Heitor Castello Branco, repetindo, com Sérgio Olidense, a história dum Mário amargamente recebido no Pará, onde “parecia uma figura sem nenhuma expressão no cenário literário do país”. (4) A verdade não é esta, e requer, além do que até agora ficou dito, um esclarecimento e uma digressão. Certo, a imprensa de Belém ocupou-se bastante de D. Olívia, porem menos por bajulação ou caipirismo que pelo fato de ser a visitante, ao fim e ao cabo, figura de incomum destaque na vida social e intelectual da nação. Além de rica, bem nascida e benemérita de causas filantrópicas – em Manaus, por exemplo, doou dois contos de réis a casas de caridade, segundo telegrama publicado n‟ “O Estado do Pará” de 17-6-1927 – mantinha D. Olívia, como se sabe, um conhecido e concorrido salão literário em São Paulo, ponto de reunião da inteligência da época, e infelizmente ainda por estudar em suas relações diretas com o Modernismo. Havia damas, havia salões naquele tempo, e até os jornalistas da província sentiam o que isto representava em termos de notícia e de cultura. Ainda assim, o brilho dos elogios a D. Olívia – “ Perlustra a Amazônia o espírito fulgurante de uma ilustre fazendeira paulista”, “A ´tournée´ de uma ilustre dama brasileira” etc. – não ofuscou na imprensa do Pará a estrela de Mário de Andrade, que em dado momento chegou mesmo a suplantar a do aviador Lindenberg, àquela altura empolgando os jornais do mundo com a façanha de seu “raid” intercontinental. Com efeito, durante os dias de permanência do poeta em Belém, os periódicos publicaram-lhe a fotografia pelo menos quatro vezes, das quais apenas uma em companhia de D. Olívia e das moças aludidas mais alto. E ao ilustrar verbalmente estes retratos, por sinal de muito interesse para uma iconografia do autor, jamais a linguagem do repórter desferiu nota negativa, a não ser, talvez, no estilo, quando louvava no lírico da Paulicéia o “estro poético”, “a esthesia do escriptor”, “a fulgurante pena”, e outros bibelôs do gênero, resíduos de uma linguagem parnasiana e pós-simbolista a que também não deixaram de pagar tributo, em maior ou menor escala, alguns de nossos mais ferozes modernistas.


De qualquer modo, o documento por ventura mais curioso, de toda esta literatura panegírica, será, em matéria de estilo quanto de ideias, a crônica “Mário de Andrade”, do clínico Gastão Vieira, estampada n‟ “O Estado do Pará” de 22 de maio daquele ano.. Mário aí aparece como “grande menestrel e polpudo prosador (sic)”, dono de um estilo “rombudamente elegante” e de “subscritos” que provocavam no cronista-médico autênticos “delíquios de goso”. Discorrendo sobre Paulicéia Desvairada, afirma Gastão Vieira que este “livro-panphleto deixa transparecer a finíssima agudeza de Mário” assim como, em Losango Cáqui, a sua originalidade residiria no escrever “talqualmente como o povo fala”. O cronista vislumbra no visitante do Sul “um intelectual de altíssimo valor”, “uma notabilíssima cultura”, “o mais bizarro escritor que já nasceu sob o céu do Brasil”. Que o adjetivo é muito perigoso, principalmente nos trópicos, dá-nos prova sobeja a crônica em discussão. Mas a verdade é que ela também espelha, descontada a suposta ironia de certas passagens ou a ambiguidade de certos elogios – a exemplo daquele em que, repetindo Agripino Grieco, o articulista escreve da Paulicéia que foi para os burgueses aturdidos “pior que um socco na bocca do estômago” – a reação de um literato do “Establisment”, certamente de formação parnasiana às criações modernistas do autor da rua Lopes Chaves. Reação que ainda serve para registrar, com fidelidade, o pulso polêmico e espiritual da província frente aos programas estéticos de 22 – fato a considerar com carinho numa história geral do Modernismo no Brasil. Outros registros houve, além do de Gastão Vieira, no referente à visita e à figura de Mário nas folhas de Belém, sempre ávidas de surpreender o poeta (e a comitiva) em seus passeios pela cidade e pelos caminhos aquáticos da região. Constituindo, todavia, matéria de interesse exclusivamente mundano, escapam ao âmbito do presente trabalho, em que se procurou reduzir ao essencial a informação dita de circunstância. Transcrevemos, não obstante, pelo pitoresco da coisa, a cartinha que Mário enviou a “O Estado do Pará” de 20-5-1927, retificando a notícia aí divulgada, no dia anterior, de que “o dr. Mário Andrade (sic)” fora “secretário particular do dr. Washington Luiz, quando na sua presidência de S. Paulo”. Sob o título “Uma carta” a retificação publicou-a “O Estado” logo no dia seguinte, e com destaque, embora a imprensasse entre um “Plantão das farmácias” e um reclame do Rapé Oxan, que combatia defluxos e provocava “gostosos espirros...” Eis o texto:

“Sr. Redator d´”O Estado do Pará”: Li hoje no seu excelente jornal as saudações que essa redação dirigiu à exma.sra. Guedes Penteado e seus companheiros desta viagem pelo vale amazônico. Venho lhe trazer os nossos agradecimentos muito sinceros. E aproveito o momento para uma retificação. O seu jornal me deu como secretário particular de S.Excia. o dr. Washington Luiz quando presidente de S. Paulo. Não o fui e me apresso em retirar dos ombros essa benemerência. E o faço com a máxima liberdade pois que pelo já experimentei posso afirmar a desnecessidade de qualquer título para que um brasileiro seja recebido fraternalmente por este povo admirável do Pará. Certo de que esta retificação terá acolhida no seu jornal, sou do Sr. redator o mais grato dos patrícios. ─ MÁRIO DE ANDRADE.

Pouco importa destacar, no caso, a gentileza do secretário e a elegância irônica de seu estilo. Mais valerá, à base de tais esclarecimentos, adiantar que só a custo se acharia o autor do Carro da Miséria entre aqueles modernistas que, segundo Ledo Ivo, apoiaram abertamente a candidatura de Washington Luiz e Júlio Prestes, expoentes da República Velha. (5) Ou do contrário não se apressaria em retirar dos ombros a benemerência que, junto com o título de “Doutor” outorgara-lhe por distração o noticiarista de “O Estado”.


E aqui chegamos, enfim, ao que de mais relevante se publicou em Belém por ocasião da visita do poeta: as entrevistas (duas) que ele concedeu à imprensa no dia 24 de maio de 1927( 6 ). (6)Porque jogam alguma luz sobre a história daqueles anos, mas também porque nos descortinam certas atitudes estéticas do entrevistado, valeria a pena examiná-las de perto e encerrar com elas a nossa investigação.


Acha-se a primeira das entrevistas na página de abertura de hoje extinto e quase esquecido “Correio do Pará, órgão do Partido Republicano Federal, e de que eram redator-chefe Julião Ausier Bentes e diretor-gerente Miguel Pernambuco Filho. Sem fotografia, mas com amplo destaque, traz por título “O Movimento modernista no sul do país” , a que se seguem quatro subtítulos sem maior importância. No intróito, o repórter não economiza elogios ao “brilhante escritor paulista”, apresentando-o ao público do Pará em termos bem lisonjeiros: “O autor do “Losango Cáqui”, que na corrente intelectual modernista de São Paulo é um dos vultos mais representativos, possui, já, o seu nome firmado nas letras nacionais, não só pelo aspecto original e verdadeiramente brasileiro que procura imprimir a todas as suas produções como pela maneira simples e formosa como descreve a beleza em todas as suas manifestações”. Pelo visto, não escapara ao provinciano jornalista o frisson nouveau daquele grupo que ele próprio rotularia, na pergunta inicial da conversa, de “brilhante plêiade que em São Paulo se filia à corrente modernista”. Quanto à entrevista em si – a que Mário acedeu “gentilmente de uma forma bem cativante “ – começa com uma rápida sinopse do poeta sobre a “nova corrente que em São Paulo, progredindo sempre, conquistou uma situação bastante promissora”. Na origem de tudo o dedo agitador de Oswald e o eco do polêmico artigo “O meu poeta futurista”, de 1921, que Mário (ou o repórter) dá como sendo do ano anterior: “Em 1920 Oswaldo de Andrade, que sem ser meu parente é um dos meus melhores amigos, publicou em um dos jornais paulistas um artigo me apresentando ao meio literário, que causou verdadeiro escândalo, desses escândalos que em vez de deprimir, consagram“. Seguem-se alguns comentários, curtos ou por alto, sobre os modernistas mais em evidência no momento, além de Oswald: Guilherme de Almeida, Menotti del Pichia – “o que maior bagagem literária possui na corrente modernista em S. Paulo” – o “prosador elegante e simples” Plínio Salgado, o “ensaísta de mérito” Couto de Barros, e Cassiano Ricardo, “um dos mais belos representantes da poesia paulista”. Na prosa, prossegue, “a maior figura é Paulo Prado, que atualmente escreve o “Retrato do Brasil”, ensaio sobre a tristeza brasileira, que está fadado a um ruidoso sucesso de livraria”. Pertencerá a Alcântara Machado, no entanto, “o melhor livro que o modernismo produziu até hoje” (Mário referia-se a Braz, Bexiga e Barra Funda, definindo-o e “estudo crítico sobre o bairro ítalo-brasileiro”). Do movimento no Rio de Janeiro, declara o entrevistado: “Depois da cisão provocada por Graça Aranha a literatura da Capital Federal não sabe que caminho tomar. As figuras mais características são inegavelmente Manuel Bandeira e Ronald de Carvalho, que refletem aspectos inteiramente diferentes na poesia”. E depois de ver em Álvaro Moreyra “um grande espírito que atingiu uma expressão pessoal admirável”, e no Primeiro Caderno, de Oswald, “um livro interessantíssimo, de ´blagues´, que tem revolucionado o meio literário de S. Paulo”, o autor dos Namoros com a Medicina acrescenta, elogiando a revista Esthetica: “O movimento modernisante mais interessante que o Rio produziu, foi a publicação da revista “Esthetica” dirigida por Prudente de Moraes Netto e Sérgio Buarque de Hollanda”. De sua obra pessoal aparecida até então, Mário considera Amar, verbo intransitivo “o meu livro mais representativo”, da mesma forma por que os contos de Primeiro Andar constituíram “um tratado retrospectivo sobre a minha vida literária”. Encerra-se a conversa com louvações do visitante ao aspecto caracteristicamente brasileiro de Belém, e em particular do Largo da Sé, !verdadeiro encanto, uma verdadeira maravilha de architectura”.


A segunda entrevista deste dia 24 de maio de 1927 estampou-se a “Folha do Norte” na primeira página, conferindo-lhe o título pouco expressivo – mas comum no tempo – de “Uma palestra com um espírito culto” e ilustrando-a com um retratinho redondo do poeta. Contornemos, além do fecho, a introdução florida do entrevistador, onde Mário aparece, “em companhia da ilustre senhora Olívia Guedes Penteado”, emitindo “impressões e conceitos numa prosa flexuosa e amena” e envergando outra vez o seu título de Doutor... Vamos logo ao questionário daquele dia, conservando, como o fizemos até agora, a grafia daqueles tempos:

─ Está satisfeito com a viagem?

─ Enormemente. Meu avô Leite Moraes, quando governador da província de Goiás, carregando meu pai como secretário, veio de rodada pelo Araguaya até aportar aqui em Belém. Como se vê, tenho na tradição os passeios fluviais pelo Brasil.

─ E pretende ir longe?

─ Assim, assim. É um passeio sem heroísmo o que fazemos. Estão decididas duas viagens: Amazonas acima até Iquitos e Madeira acima até Guajará-Mirim. Provavelmente daremos um pulo à Bolívia e, tempo sobrando, subiremos o Rio Negro e, na volta, visitaremos Marajó.

─ E não se assustam com o desconfôrto?

─ Não haverá desconfôrto. Todos aqui têm sido incansáveis em nos facilitar viagens e passeios. Vivemos em plena lua de mel com este povo, estas águas e terras. Evidentemente não é a mesma coisa dar uma volta de auto até o Souza e sacolejar na poeira da Madeira Mamoré; porém o conforto é coisa relativa, provém muito mais da elasticidade do corpo. Ora, tanto a senhora Guedes Penteado e senhorinhas Nogueira e Amaral, como eu, estamos acostumados no esporte diário. Corpo disposto leva gente até o fim do mundo, sem pesar.

─ E que acha de Belém?

─ Nem me fale. É um dos encantos do Brasil. O Brasil possue algumas cidades bonitas: o Rio, Belo Horizonte, Recife, São Paulo; mas, a todas estas falta carácter. Belém é como Ouro Preto, como Joinville, como Salvador; possui beleza característica (sic). Este céu de mangueiras, filtrando sobre a gente, produz uma ambiência absolutamente original e lindíssima. Vejo com terror que em certas ruas estão plantando árvores estrangeiras.

─ Há o problema da humanidade a resolver...

─ Será um problema ou uma fatalidade climática? Aliás, a solução do problema não implica importação de árvores da “estranja”. Essa arvoreta bem educada que andam plantando é insuportavelmente monótona e estúpida como um pato. Imagine só uma alameda arborizada e com tufos de assahyzeiros? Seria adorável e vivaz como esses mameluquinhos que andam nus nas praias afastadas. Com as mangueiras, os barcos e velas coloridas, e tantos outros encantos originais, vocês têm um thesouro de belleza nas mãos. Aproveitado sem espírito de imitação, Belém será a mais linda cidade equatorial.

─ E a architectura?

─ O Teatro da Paz é bom. Nazaré é admirável no seu luxo, embora não seja nada brasileira. Em todo caso, antes ela que a Cathedaral gothica pavorosa que estão construindo em São Paulo. E há um lugar sublime, que é preciso preservar de qualquer modificação: o largo da Sé. Só mesmo a Praça de São Francisco, em São João d‟el Rei, é tão bella como o largo da Sé daqui. Nem na Bahia se encontra um conjunto tão harmonioso, tão equilibrado e sereno. É uma preciosidade.

Nas linhas e entrelinhas da conversa em causa – na qual, adianta-nos o repórter, Mário revelou “fluência de fino ´causeur´ – cintilam partículas múltiplas do ideário modernista, a começar pela viagem em si, empreendida menos como jornada de turismo do que como peregrinação cognoscitiva da Amazônia. É que o “inferno verde” de Alberto Rangel e de Euclides da Cunha já se transformara, muito antes de 1927, no território por excelência mítico do Modernismo, entendendo-se que o escritor que o desconhecesse, que o não tivesse “sentido” através da experiência direta, incorria de certa forma numa transgressão intelectual .(7) “Querem conhecer a Amazônia”, é a manchete a que por duas vezes recorre, falando dos recém-chegados visitantes paulistas. “O Estado do Pará”. E mais tarde , às vésperas de a comitiva regressar a S. Paulo depois do périplo do grande vale, do Solimões a Iquitos e do Acre até a Bolívia, o mesmo órgão escreverá, da “distinta senhora” Penteado, que “veio à Amazônia no interesse de conhecer este longínquo e rico torrão da federação brasileira, tão desconhecido e ridicularizado pela gente sulista” (20-7-1927). Assim, por trás do “passeio sem heroísmo” das declarações à “Folha do Norte”, ou da “bonitíssima duma viagem” da carta a Bandeira, percebe-se todo um programa modernista de (re)conhecimento da terra, integrado num plano mais vasto ainda de revalorização da cultura brasileira à luz de nossa história, dos nossos costumes, da autenticidade de nossas tradições – enfim, da “nossa coisa nacional”, conforme expressão do próprio Mário num trecho do O Empalhador de Passarinho (“Uma suave rudeza”, reedição conjunta da Martins e do Instituto Nacional do Livro, S. Paulo-Brasília, 1972, p. 66). Certo, muito modernista de destaque, em obediência a tal programa, foi cair direitinho na arapuca do exotismo. Quando não se entregou de corpo e alma cantando aos quatro ventos as grandezas do país, ao mais apaixonado gênero de ufanismo, o que levaria Carlos Drummond de Andrade a anotar, num poema de Brejo das Almas (1934), que o Brasil já estava farto de nós e queria repousar de nossos terríveis carinhos... (8) Mário evidentemente, resistiu à tentação, e disto há provas cabais na entrevista que seguimos comentando.


Na Belém de 1927, por exemplo, ele preferirá o autêntico ao exótico, o que explica se encantasse com o Largo da Sé – “lugar sublime”, “uma preciosidade” – e tachasse de “nada brasileira”, embora “admirável no seu luxo”, a extravagante e bigarrée Igreja de Nazaré. Em caso de dúvida, porém, ficaria com ela e não com a catedral gótica de S. Paulo, simplesmente pavorosa”. Em verdade, nenhum dos templos poderia jamais seduzir o poeta. Faltava-lhes, antes e acima de tudo aquele “caráter” que o viajante sentira pulsar em Ouro Preto, em Joinville, em Salvador, e que emprestava a Belém, por isso mesmo, a sua “beleza característica”. Neste contexto, e não no de um extremado nacionalismo, é que deveríamos entender o “terror” do visitante ao presenciar, na capital do Pará, a substituição das mangueiras por árvores “da estranja”. Ao contrário destas últimas, as mangueiras, originárias da Índia tropical, já se haviam integrado à história e à fisionomia de Belém, faziam parte de seu “caráter”, pelo que a ideia de eliminá-las deveria quedar fora de cogitação. Aqui, além do mais, demonstrava Mário de Andrade uma consciência ecológica perfeita, pois que nenhuma árvore européia substituiria em beleza e funcionalidade, sob o sol do equador, a mangueira frutífera e frondosa. E quando o poeta sonha com uma alameda de açaizeiros, não faz mais do que prenunciar os paraísos arbóreos de Burle Marx, em que planta, paisagem e homem, coexistindo em sensual harmonia, sugerem dentro do mundo tropical uma concepção hedênica da vida. Saliente-se, por fim, a preocupação – também modernista – de prescrever a saúde através da higiene física, que na conversa acima se reflete no comentário sobre a elasticidade do corpo, adquirida com a prática do esporte diário. Daqui se poderia partir, bem entendido, à apologia que da existência ao ar livre propuseram vários modernistas, bastando lembrar o caso do dinamismo vital e até animal de Graça Aranha, espécie de Metástase brasileira dos paroxismos dionisíacos de Nietzsche. De qualquer modo, não nos interessa no momento a presença de Nietzsche no Brasil, assunto ainda por estudar, senão a presença de Mário de Andrade no Pará, assinalada sobremaneira nas fontes que estivemos explorando.


Três dias depois das entrevistas acima, a comitiva Penteado – e com ela o poeta-secretário – deixou Belém no rumo de Iquitos e escalas, dando início a uma exploração da Amazônia que duraria exatamente um mês. Aos 28 de junho, acha-se o grupo de volta à capital do Pará, de onde retornaria a S. Paulo a 1º de agosto, a bordo do Baependy. As colunas sociais que se ocuparam do fato, e foram muitas, igualmente anunciavam o retorno ao sul, pelo mesmo barco, do escritor português Gastão de Bittencourt, o homem que em 1946 publicaria em Lisboa, dedicando-o a Câmara Cascudo e à memória de Mário de Andrade, falecido no ano anterior, o seu A Amazônia no fabulário e na arte. A inteligência do tempo, como se vê, andava de namoro firme com o inferno verde, berço de Macunaíma, herói de nossa gente.


(1) ANDRADE, Mário de, Cartas a Manuel Bandeira. Rio de Janeiro, Organização Simões Editora, Editora, 1958, pp161, 163-164.

(2) São Paulo, Edart-São Paulo Editora, 1971, p 28

(3) Nesta mesma carta – datada de “por esse mundo de águas VI-27” e escrita, de bordo, um dia antes da chegada a Manaus – Mário recordará com nostalgia as horas de Belém, cidade que a Paulo Duarte ele confessou (op.cit.p.139) ser a sua preferida, depois de Florença. Da capital guajarina relembrava em especial as comidas e bebidas, as chuvas e as mangueiras, o Grande Hotel e o Teatro da Paz, para acabar admitindo sem rebuço: “Porém Belém eu desejo com dor, desejo como se deseja sexualmente, palavra”. Enquanto depoimento das reações de Mário frente ao sortilégio da Amazônia, é carta de incomum interesse para o biográfo, não o sendo menos para o crítico de literatura, se considerarmos o que de “amazônico” o poeta injetou no Macunaíma, na crônica, obra de antologia, “Tacacá e Tucupi” (Os Filhos da Candinha) e em passos outros de sua obra. Também poderia servir de texto-gênese da “Moda do Alegre Porto” (p. 182 da citada correspondência a Bandeira), curiosíssimo poema sobre Belém do Pará, de que a peça mais famosa de Manuel Bandeira, versando o mesmo tema, será irmã siamesa.

(4) “Mário de Andrade, secretário de D. Olívia”, Suplemento Literário de O Estado de São Paulo, 16-1-1972. Dois anos antes em Macunaíma e a viagem grandota (S. Paulo, Quarto Artes Editora), o mesmo jornalista escrevia, da imprensa de Belém, não consultou os jornais paraenses de 1927. E nem as Cartas a Manuel Bandeira, onde Mário confessa (p 165) que, na Amazônia, passava “por homem ilustre e uma grande inteligência aí do sul”.

(5) Modernismo e Modernidade, Rio de Janeiro. Livraria São José, p.16

(6) Será oportuno recordar aqui, pois que se relaciona com a visita de Mário e de D. Olívia à Amazônia, o capítulo “A Rainha do Café”, do romance Safra, de Abguar Bastos (Rio de Janeiro, José Olympío Editora, 1937), todo ele uma sátira apimentada da aventura de 1927. Citamos apenas, como amostra, os dois parágrafos de abertura: “Uma vez chegou à Vila a Rainha do Café”. Vinha de São Paulo, terra do café, com vestidos deslumbrantes. Chamaram-na, respectivamente, no Maranhão: a “ilustre”, no Pará: a “inconfundível”, no Amazonas, a “insigne”Rainha do Café. Teotonio, que ia passando, viu tudo. A Rainha levava no séquito duas jovens sobrinhas e um secretário famoso, não por ser secretário, mas em virtude de ser autor de dois livros que haviam assustado, sobremodo, a arte nacional (p 176).

(7) Alguns dos motivos subjacentes à mitificação da Amazônia dentro do Modernismo, o leitor os encontrará trabalhados com mão de mestre por Wilson Martins, no capítulo “1931 COBRA NORATO” de A Literatura Brasileira, v. VI, O Modernismo, S. Paulo, Editora Cultrix, 1964.

(8) Trata-se de “Hino Nacional” de consulta obrigatória para um entendimento adequado de algumas das ideologias do Modernismo, entrevistas sob o raciocínio irônico do poeta.

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