O sentir e o pensar o tempo em três poemas líricos
Ao prof. Francisco
Paulo do Nascimento Mendes (in memoriam)
Celia Coelho
Bassalo
Profa. UFPA - aposentada
(agosto, 2010)
Tornou-se lugar-comum dizer que o homem, desde a antiguidade,
sempre esteve ligado a reflexões sobre
o tempo e suas
mudanças. Abordar esse
instigante tema
é um fascínio
que envolve as inquietantes mentes literárias ligadas
à visão de mundo
de várias épocas, sobretudo
da Literatura Contemporânea.
Vale salientar que tal estudo é extremamente
complexo, pois
se trata de um
assunto abrangente envolvendo todas as áreas do conhecimento
humano, mas
a função do artista
é a de criar a realidade
circundante naquilo que ela tem, no caso,
de universal: o tempo
e suas mudanças.
No caso das poesias
estudadas a seguir,
pode-se considerar que,
às vezes, o sentir
e o pensar, do eu lírico,
desempenham papel fundamental
com relação
à fugacidade temporal,
no momento em
que esta se refere às transformações da figura humana, quer do ponto de vista físico quanto do psicológico.
É o tempo da experiência
(re)velando-se, nos três
primeiros poemas,
não apenas
como tempo
da natureza, isto
é, como tempo
cíclico e astronômico, mas também como tempo histórico, a incidirem − todos
− na sensibilidade artística
e a refletirem as distintas e multifacetadas visões
de mundo e de tempo,
em que
o eu poético como
que se resigna à impossibilidade de deter o relógio do universo, que a
todos se mostra
inexorável.
A intenção deste artigo
é tratar o sentir
o tempo em
dois poemas, um de Sá de Miranda (1481-1558), outro
de Luiz de Camões (1524 - 1580), respectivamente.
Do como sentir
o tempo, também
escolhi o nosso Manuel Bandeira (1886-1968), um
dos maiores poetas
líricos brasileiros.
Sá de Miranda, o iniciador
do Renascimento em
Portugal – fato que
marcou o início dos tempos
modernos nesse país
– foi o primeiro poeta a usar em terras lusitanas versos
“maiores”, não
substituindo as redondilhas, mas acrescentando também
outra forma
de poetar: o soneto.
Isso só foi possível aquando de seu
regresso a Portugal em
1526, depois de um
convívio com
escritores e artistas
italianos que o influenciaram grandemente. O fruto
dessa viagem foi trazer
ao país uma nova
estética, introduzindo além do soneto,
a canção, a sextina, as composições em tercetos e em oitavas e os versos
de dez sílabas,
afora várias outras composições
poéticas.
Com seu “doce estilo novo” descreve no primeiro verso do Soneto a seguir a constatação, de modo
inusitado, da ausência
de ventos e um
calor intenso
num luminoso dia.
Sá de Miranda toma como base do poema sua visão de mundo – o mundo
temporário
–, e as transformações decorrentes do tempo
cíclico, não apenas
para meditar sobre a irregularidade
das estações do ano,
mas também
para delinear um eu lírico amargurado
ao observar a irregular
mutação repentina
da natureza, a previsível mutabilidade gradativa do ser humano e a incoercível impossibilidade
de o eu
lírico deter
as suas próprias transformações. (no verso, grifo nosso)
Soneto
O sol é grande:
caem co'a calma as aves,
Do tempo em
tal sazão, que sói ser fria.
Esta água que de
alto cai acordar-me-ia,
Do sono não, mas de
cuidados graves.
Ó cousas todas vãs,
todas mudaves,
Qual é tal coração
que em vós confia?
Passam os tempos,
vai dia trás dia,
Incertos muito mais
que ao vento as naves.
Eu vira já aqui sombras, vira flores,
Vi tantas águas, vi
tanta verdura,
As aves todas
cantavam de amores.
Tudo é seco e mudo;
e, de mistura,
Também mudando-me eu
fiz doutras cores.
E tudo o mais
renova: isto é sem cura!
Fugindo um pouco ao tema, o introdutor
da medida nova
faz uma referência às grandes navegações
impulsionadas pelas velas e que eram levadas a destinos
incertos. Nos dois
primeiros decassílabos da mesma quadra, destaca,
com a interjeição,
o sugerir de impressões
doridas que envolvem a alma de um eu sublime por serem
as coisas vãs, passíveis
de modificações e não dignas de confiança.
Ligadas à experiência subjetiva,
as aflições do bardo
fazem-no sentir e viver o
escoar de algo
que se reflete nas modificações físicas e psicológicas por
ele, bardo,
sofridas. E é esse mesmo
sujeito lírico,
que já
presenciara várias transformações da natureza,
das estações do ano
com sombras,
flores, águas,
verdores, aves gorjeando amores e de seu
natural e constante
recomeçar.
Arrematando o poema com perfeição formal, equilíbrio, harmonia,
e universalizando a nostalgia expressa no seu
último terceto
(portanto, no limiar
da velhice), percebe o aflorar da sua dolorosa, amarga e sutil melancolia, ao verificar que a renovação da natureza
não atinge o ser
humano, pois este, com o passar do tempo, vai
assumindo fisicamente novas cores – a palidez, por exemplo –,
sugerindo, dessa forma, a perda
irrecuperável do viço,
da juventude, do frescor,
daí o poeta dizer: isto é sem
cura!
MMMuito recorrente
na Renascença, o tema
da mudança também
tocou Luiz de Camões, que aproveitou estilística,
filosoficamente e de modo intertextual os
versos de Sá de Miranda ─ Ó cousas todas vãs, todas mudaves ─ para lastimar,
sobretudo, as modificações verificadas nos seres humanos.
Embora em outro contexto e com
uma visão diferente
de mundo, Camões também
lamenta a passagem
inexorável do tempo
com todas as suas
mudanças, e assim como
em Sá de Miranda, essas modificações são para pior, estabelecendo, dessa forma,
uma correspondência entre
ambos, inclusive
quanto às transformações dos desejos, implicadas e continuamente negativas do ponto de vista pessoal. A
mutabilidade do tempo, portanto, está cantada de modo semelhante à melancolia do autor de Em tormentos crueis,
tal sofrimento.
Ratifique-se que o sentido do poema é um aproveitmento estilístico do soneto daquele compositor do final da Idade Média e dos primeiros cinquenta anos do Renascimento. Aqui, o autor de No mundo quis o Tempo que se achasse, afirma que “todo mundo é composto de mudança / Tomando sempre novas qualidades”, o que sugere, a meu ver, novas condições, posições, funções e, decerto, novas perspectivas dialéticas. Camões admite as características humanas poetizadas tristemente pelo eu lírico: desconfiança, desesperança, mágoas, tristes recordações, enfim, os desconcertos do mundo. Ora, um ser lírico com essas “qualidades” e com a polissemia desse termo, é um ser marcadamente atormentado pelas lembranças, daí dizer que com as mudanças ficam as mágoas na memória e as saudades “do bem, se algum houve!”. Esse soneto faz lembrar Babel e Sião, poema inspirado no Salmo 136, “Super flumina Babylonis”, no qual os judeus, desterrados em Babilônia, choram o tempo em que viveram felizes em sua terra, Sião ou Jerusalém.
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto
de mudança,
Tomando sempre novas
qualidades.
Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo
da esperança;
Do mal ficam as mágoas
na lembrança,
E do bem, se algum
houve, as saudades.
O tempo cobre
o chão de verde
manto,
Que já coberto foi
de neve fria,
E em mim
converte em choro
o doce canto.
E, afora este
mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.
A passagem do tempo
está clara em
todo o soneto.
No primeiro terceto,
ao dizer que O tempo
cobre o chão
de verde manto,
/ Que já
coberto foi de neve
fria, marca a implacável
transformação do eu
lírico no momento
em que
converte em
choro o doce
canto. No entanto,
o espanto maior
do poeta é Que não se muda
já como
soía, isto é, como
era hábito
a mudança à época,
por ser esta regular, porque em Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
o tempo transcorre, diariamente, num constante
alterar-se de maneira assombrosa.
De Manuel Bandeira, pode-se dizer que não é possível afastar a experiência de vida
da sua experiência
poética, pois
apesar de sua
poesia ser de
uma universalidade intensa, ardente e singela,
ela não
pode ser reduzida a acontecimentos
biográficos, que se revelam matrizes de imagens,
de emoções, de ritmos,
transfigurados mistérios da criação. No poema
“Elegia no Verão”,
o poeta lança mão
do tropo português
da “saudade” evidenciando, com sinceridade,
a lembrança sentida
e nostálgica da infância. Reafirma, na sua linha poética, a presença das grandes inquietações
sentidas com a passagem
do tempo, porém
com ternura
ardente dor
existencial, ao recordar o período
em que
era menino.
Bandeira atribui ao tema
da infância uma força
humanizadora, uma espécie de metáfora obsedante
que o acompanha desde
os versos da mocidade.
Isso fez com
que ele
– um dos poetas
mais líricos
do Modernismo – retomasse o tema da melancolia contemplativa,
da fugacidade das coisas,
para criar sua Elegia de verão.
Esse pernambucano soube absorver
com simplicidade
o lirismo de formas
múltiplas explorado pelos poetas modernos.
Na elegia, embora
cante a pureza do garoto
inocente, permeada de nostalgia, o poeta também se adaptou à ironia,
à crítica... tão
ao gosto da estética
de seu tempo.
Daí porque no segundo,
terceiro e quinto
versos da terceira
estrofe ele
critica a não importância
dada pelo Patrimônio Histórico
ao “Largo do Boticário”,
com suas
“caixas-d'água vermelhas de ferrugem”, largo
que era
um recanto
bucólico do Rio
de Janeiro, rodeado pela
floresta e pelo
Rio Carioca e
com edificações
neocoloniais.
Outra crítica feita por Bandeira
diz respeito à mudança
da ortografia da língua
portuguesa, mesmo consciente
de que toda
língua é dinâmica,
mutável, mas, no poema,
o sujeito empírico
é um conservador
das coisas.
Elegia de verão
"O
Sol é grande.
O coisas
Todas vãs, todas mudaves!
(Como esse
"mudaves"
Que hoje
é "mudáveis
"Que já
não rima
com "aves".)
O sol
é grande. Zinem as cigarras
Em laranjeiras.
Zinem as cigarras: zino, zino,
zino...
Como se fossem as mesmas
Que eu
ouvi menino.
Os verões de antigamente!
Quando o Largo
do Boticário
Ainda poderia
ser tombado.
Carambolas ácidas, quentes de mormaço;
Água morna
das caixas-d'água vermelhas de ferrugem;
Saibro cintilante...
O sol
é grande. Mas,
ó cigarras que
zinis.
Não sois as mesmas que eu ouvi menino.
Sois outras, não me interessais...
Deem-me as cigarras que eu ouvi menino".
A melancolia
de Bandeira, associada a um
sentimento de trieteza, é cantada
na elegia, na qual
vêm à tona a sua
tristeza e a vontade
de proustianamente, trazer de volta
a infância perdida, já
poetizada em “Infância”,
“Evocação do Recife”,
“Profundamente”, “Na Rua do Sabão”,
“Balãozinhos”... Trata-se de uma fase mágica da infância
do poeta, um locus amenus em que a criança se faz presente nos poemas que tentam recriar a experiência da meninice.
É por meio
desses textos poéticos que se estende uma ponte
voltada ao sujeito passado;
entretanto, as cigarras
e o seu zinir
cheio de musicalidade encantatória – esta
uma influência do melodioso movimento
Simbolista – não têm o poder
de iludir o poeta quanto à fuga
do tempo, daí não
ser possível possuí-las
no presente, pois elas só podem “ressoar” no ouvido de um sujeito adulto e consciente de que
a fase de menino
“foi há muito tempo”,
como ele
mesmo diz em
sua
Conforme se observou, diante dessas variadas maneiras
de sentir e/ou
pensar o tempo
e suas mudanças, na poesia
esses estados
d’alma são
extremamente complexos
– sobretudo o sentir/pensar o tempo – para se explicarem num pequeno
artigo. Por
isso, é bom
recordar o dilema
de Santo Agostinho nas suas “Confissões”:
O que, então,
é o tempo? Se ninguém
me pergunta, eu o sei; se desejo
explicá-lo àquele que
pergunta, não
o sei.”
BIBLIOGRAFIA
1. BANDEIRA, Manuel. Estrela da Vida
Inteira. Rio
de Janeiro, José Olympio, 1966
2. BÍBLIA SAGRADA.
Traduzida da vulgata e anotada pelo padre Matos Soares. São Paulo, Paulinas, 1954, 6a edição,
3. CAMÕES, Luís de. Obras completas. Lisboa, Sá da Costa, 1962, II vols. 3a edição.
4. HANS,
Meyerhoff. O tempo na Literatura.
São Paulo, McGraw do Brasil, 1976 (trad.
de Myriam Campello, revisão técnica de Afrânio Coutinho.)
5. MIRANDA, Francisco Sá de. Obras Completas. Vol. I, Lisboa, Livraria Sá da Costa,
1942. Texto fixado, notas
e prefácio pelo prof. M.
Rodrigues Lapa. 2a edição.
6. SANTO
AGOSTINHO. Les confessions de Saint
Augustin. Paris, Garnier, 1921
WEBGRAFIA
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(julho, 2010)