segunda-feira, 2 de maio de 2011

Mário de Andrade no Pará, os sucessos e documentos da viagem e algumas considerações sobre o modernismo

CÉLIA COELHO BASSALO e JOAQUIM-FRANCISCO COELHO



Dá pano pra muita manga a história da viagem de Mário de Andrade à Amazônia, em 1927, de que a parada obrigatória em Belém do Pará veio a constituir fascinante capítulo. Tão fascinante, de fato, mas igualmente tão ignorado, que não seria talvez fortuito, à luz do noticiário da imprensa belenense da época, reconstituí-lo no conjunto e no detalhe, retraçando os passos do poeta na capital do Pará. Tudo é matéria à curiosidade dos biógrafos, e foi pensando neles, menos que nos professores e críticos, de literatura, que resolvemos alinhavar as considerações abaixo.


A rigor, a aventura amazônica de Mário começa a 6 de abril de 1927, quando, de São Paulo, ele anuncia em carta a Manuel Bandeira: “Creio que vou me embora pro norte mês que vem, numa bonitíssima duma viagem. Dona Olívia faz tempo que vinha planejando uma viagem pelo Amazonas a dentro. E insistia sempre comigo para que fosse no grupo. Eu ia resistindo, resistindo e amolecendo também. Afinal, quando quase tudo pronto, resolvi ceder mandando a merda esta vida de merda. Vou também. Isto é, ainda não sei bem se vou, só falta saber o preço da viagem. Se ficar aí por uns quatro contos, vou, se ficar pra cima de cinco não vou. Tenho de emprestar dinheiro pra ir e isto vai me deixar a vida bem difícil depois e os projetos no tinteiro”. E mais adiante, na mesma carta, detalha o projeto, e até o trajeto, da romaria: ”Puxa! creio que nem contei pra você por onde vai ser a nossa viagem. É melhor mesmo do que falar noutras coisas. Vamos pelo Lóide Brasileiro parando de porto em porto até Manaus. De lá subimos o Amazonas já com tudo determinado pelo Geraldo Rocha pra pararmos em todas as partes interessantes, continuamos pelo Madeira e vamos parar na Bolívia. Depois não sei como é a volta, sei que tomamos a Madeira-Mamoré até parece que Guaiara (sic, por Guajará) Mirim e depois não sei mais nada. Vamos D. Olívia, Paulo Prado, o Afonso de Taunay e parece que mais uma pessoa”. E conclui, já arquitetando planos para a volta ao Sul: “Como você vê as perspectivas são as melhores deste mundo. Peço quatro meses de férias. Parece que a viagem dura três. Se durar e achar jeito, na volta me desligo da comitiva pra parar um pouco mais com o Cascudinho, em Natal, e no Recife e na Bahia. Isto porém está muito problemático. Aliás a viagem toda pra mim...(1)

Se a viagem ficou ou não acima de quatro contos, e se o poeta encontrou enfim quem lhe emprestasse o dinheiro, eis a questão. O que já não se questiona, porém, é a partida para o norte, cinco dias depois desta carta, sendo de salientar que será como secretário particular de D. Olívia que vai Mário aparecer, logo mais, nas manchetes da imprensa de Belém. Vale igualmente adiantar, a título de esclarecimento e correção de fatos, que nem Paulo Prado nem Afonso de Taunay participaram da aventura. Com efeito, nenhum dos dois escritores consta da lista de passageiros fornecida pelo Loide aos jornais belenenses do tempo, os quais apenas registram, além de D. Olívia e Mário, as três outras pessoas, todas por sinal mulheres, que integraram no final das contas a caravana: Madalena e Helena Nogueira e Dulce Amaral, filha mocinha de Tarsila do Amaral. Esta Dulce, aliás, Paulo Duarte confundiria com a própria pintora ao referir-se, de passagem, à expedição de 27 no seu Mário de Andrade por ele mesmo (2). A julgar pelas mencionadas listas de passageiros, o grupo saiu do Rio e não de Santos, e levou oito dias para chegar a Belém. Escalando na Bahia, em Pernambuco e no Ceará, viajaram todos em primeira classe, e o nome do navio do Loide que os trouxe, Pedro I, não soaria mal aos ouvidos do modernista que, cinco anos antes, em Paulicéia Desvairada, alinhara com as “juvenilidades auriverdes” no oratório profano “As Enfibraturas do Ipiranga”. Tem lá o seu sabor, principalmente quando se preserva a grafia da época, a descrição que da entrada do barco na baía de Guajará, em Belém, dá-nos a “Folha do Norte” de 20 de maio de 1927, na coluna “Mares e Rios”: “Ingressando no quadro de franquia pelo canal de dentro da Porto of Pará, foi até em frente ao Castello, de onde demandou o cais, atracando às onze horas, em frente ao galpão número 3. Nesses (sic, por nesse) momentos, entre o agitar dos passageiros, preparando-se para desembarcar, se fazia ouvir, executando vários trechos de música, o afinado “tercetto” de bordo. No cais, suportando o forte calor causado pelo verão, que se aproxima, viam-se inúmeras pessoas aguardando o momento de abraçar os que chegavam. Nas pesquisas que fizemos a bordo entre os passageiros, procurando saber das novidades, fomos informados da satisfação que entre todos reinava pela ótima viagem que vinha de fazer o “Pedro I”, cuja oficialidade a todos soube cativar com as suas atenções”.


Eis a citação a que nos referimos: ”No ano anterior (1927), Mário de Andrade, na companhia de D. Olívia Penteado, de Tarsila e sua filha Dulce e outros, havia realizado uma longa viagem pela Amazônia, subindo o grande rio até Iquitos. Trouxe um mundo de notas sobre costumes, folclore musical e observações pessoais. Esta viagem abriu-lhe as portas do entusiasmo pelo norte e pelo nordeste do Brasil, o que motivou outras idas posteriores àquelas paragens e consolidou o seu amor brasileiro por essa imensa e heróica região, onde o Brasil toma aspectos originais inteiramente seus. Macunaíma acolheu, depois de pronto, algumas influências nortistas e nordestinas. Sim, algumas apenas,porque quando se deu a viagem pelo Amazonas, Macunaíma,já estava pronto para a tipografia”. Corretas no conjunto, principalmente no que tange ao Impacto da aventura amazônica na pessoa e na obra de Mário, as observações de Paulo Duarte pedem não obstante duas retificações, além da que já fizemos em relação à Tarsila. Pra começar, não é certo estivesse Macunaíma pronto para a tipografia, quando se deu a viagem ao Amazonas. Pois Mário não afirmou a Bandeira, em carta de 4-10-1927 (op.cit.d.175), “estou passando a limpo o Macunaíma?” Segundo, o autor desta rara rapsódia nunca mais retornou à Amazônia, embora ansiosamente o desejasse, a ponto de recorrer, para tanto, à influência de amigos. Contou-nos o compositor Waldemar Henrique, uma dessas amizades, que, quando funcionário do DEIP em Belém, recebera de Mário mais de uma carta neste sentido, nas quais o poeta indagava da possibilidade de retornar a Belém mediante interferência da imprensa ou do governo, fato que infelizmente jamais ocorreu.


Nesta cena de cais, digna do Jorge Amado de Os Velhos Marinheiros, apraz imaginarmos o carão alegre do Mário músico, rindo com todos os dentes do “tercetto” de bordo, com certeza menos afinado do que sugere a ingenuidade do trêfego repórter. Enfim, importa é que o escritor e a comitiva encontraram, ao desembarcar, tratamento de primeira, recebidos que foram pelos maiorais da terra, destacando-se entre eles o heráldico dr. Samuel Mac-Dowell, cuja árvore genealógica Ricardo Borges levantou com esmero nos seus Vultos Notáveis do Pará (Belém, Conselho Estadual de Cultura, 1970). D. Olívia foi mesmo conduzida ao famoso Grande Hotel no auto governamental do então presidente do Estado, dr. Dyonísio Bentes, que quatro dias depois regalaria os visitantes com um “delicado ágape”, no qual o próprio dr. Dyonísio, em “ligeira oração”, testemunhou o seu apreço e o de sua família à distincta “touriste” paulista” (“Notas Mundanas”, “Folha do Norte” , 25-5-1927). Qual seria de esperar, D. Olívia agradeceu a gentileza do governante através de Mário de Andrade, o tão certo secretário, que então improvisou um discurso referido mais tarde em carta a Bandeira: “Imagine porém que até um discurso de improviso tive de fazer respondendo a uma saudação do Dionísio Bentes, presidente do Pará. Sou incapaz de improvisar. Falei um quarto de dúzia de coisas familiares a me assentei tremendo feito bobo. Pelo menos asneira creio que não saiu nenhuma não”. (3)
que ela “gozava” o poeta e músico maluco, de todas as formas possíveis” (p 26). Evidentemente, ao escrever o seu opúsculo, Castello Branco.


Não se julgue, entretanto, das recepções e menções honrosas a D. Olívia, que Mário jazia na sombra, encarado apenasmente como ajudante de ordens da ilustre dama, qual sugeriu há coisa de um ano o jornalista Carlos Heitor Castello Branco, repetindo, com Sérgio Olidense, a história dum Mário amargamente recebido no Pará, onde “parecia uma figura sem nenhuma expressão no cenário literário do país”. (4) A verdade não é esta, e requer, além do que até agora ficou dito, um esclarecimento e uma digressão. Certo, a imprensa de Belém ocupou-se bastante de D. Olívia, porem menos por bajulação ou caipirismo que pelo fato de ser a visitante, ao fim e ao cabo, figura de incomum destaque na vida social e intelectual da nação. Além de rica, bem nascida e benemérita de causas filantrópicas – em Manaus, por exemplo, doou dois contos de réis a casas de caridade, segundo telegrama publicado n‟ “O Estado do Pará” de 17-6-1927 – mantinha D. Olívia, como se sabe, um conhecido e concorrido salão literário em São Paulo, ponto de reunião da inteligência da época, e infelizmente ainda por estudar em suas relações diretas com o Modernismo. Havia damas, havia salões naquele tempo, e até os jornalistas da província sentiam o que isto representava em termos de notícia e de cultura. Ainda assim, o brilho dos elogios a D. Olívia – “ Perlustra a Amazônia o espírito fulgurante de uma ilustre fazendeira paulista”, “A ´tournée´ de uma ilustre dama brasileira” etc. – não ofuscou na imprensa do Pará a estrela de Mário de Andrade, que em dado momento chegou mesmo a suplantar a do aviador Lindenberg, àquela altura empolgando os jornais do mundo com a façanha de seu “raid” intercontinental. Com efeito, durante os dias de permanência do poeta em Belém, os periódicos publicaram-lhe a fotografia pelo menos quatro vezes, das quais apenas uma em companhia de D. Olívia e das moças aludidas mais alto. E ao ilustrar verbalmente estes retratos, por sinal de muito interesse para uma iconografia do autor, jamais a linguagem do repórter desferiu nota negativa, a não ser, talvez, no estilo, quando louvava no lírico da Paulicéia o “estro poético”, “a esthesia do escriptor”, “a fulgurante pena”, e outros bibelôs do gênero, resíduos de uma linguagem parnasiana e pós-simbolista a que também não deixaram de pagar tributo, em maior ou menor escala, alguns de nossos mais ferozes modernistas.


De qualquer modo, o documento por ventura mais curioso, de toda esta literatura panegírica, será, em matéria de estilo quanto de ideias, a crônica “Mário de Andrade”, do clínico Gastão Vieira, estampada n‟ “O Estado do Pará” de 22 de maio daquele ano.. Mário aí aparece como “grande menestrel e polpudo prosador (sic)”, dono de um estilo “rombudamente elegante” e de “subscritos” que provocavam no cronista-médico autênticos “delíquios de goso”. Discorrendo sobre Paulicéia Desvairada, afirma Gastão Vieira que este “livro-panphleto deixa transparecer a finíssima agudeza de Mário” assim como, em Losango Cáqui, a sua originalidade residiria no escrever “talqualmente como o povo fala”. O cronista vislumbra no visitante do Sul “um intelectual de altíssimo valor”, “uma notabilíssima cultura”, “o mais bizarro escritor que já nasceu sob o céu do Brasil”. Que o adjetivo é muito perigoso, principalmente nos trópicos, dá-nos prova sobeja a crônica em discussão. Mas a verdade é que ela também espelha, descontada a suposta ironia de certas passagens ou a ambiguidade de certos elogios – a exemplo daquele em que, repetindo Agripino Grieco, o articulista escreve da Paulicéia que foi para os burgueses aturdidos “pior que um socco na bocca do estômago” – a reação de um literato do “Establisment”, certamente de formação parnasiana às criações modernistas do autor da rua Lopes Chaves. Reação que ainda serve para registrar, com fidelidade, o pulso polêmico e espiritual da província frente aos programas estéticos de 22 – fato a considerar com carinho numa história geral do Modernismo no Brasil. Outros registros houve, além do de Gastão Vieira, no referente à visita e à figura de Mário nas folhas de Belém, sempre ávidas de surpreender o poeta (e a comitiva) em seus passeios pela cidade e pelos caminhos aquáticos da região. Constituindo, todavia, matéria de interesse exclusivamente mundano, escapam ao âmbito do presente trabalho, em que se procurou reduzir ao essencial a informação dita de circunstância. Transcrevemos, não obstante, pelo pitoresco da coisa, a cartinha que Mário enviou a “O Estado do Pará” de 20-5-1927, retificando a notícia aí divulgada, no dia anterior, de que “o dr. Mário Andrade (sic)” fora “secretário particular do dr. Washington Luiz, quando na sua presidência de S. Paulo”. Sob o título “Uma carta” a retificação publicou-a “O Estado” logo no dia seguinte, e com destaque, embora a imprensasse entre um “Plantão das farmácias” e um reclame do Rapé Oxan, que combatia defluxos e provocava “gostosos espirros...” Eis o texto:

“Sr. Redator d´”O Estado do Pará”: Li hoje no seu excelente jornal as saudações que essa redação dirigiu à exma.sra. Guedes Penteado e seus companheiros desta viagem pelo vale amazônico. Venho lhe trazer os nossos agradecimentos muito sinceros. E aproveito o momento para uma retificação. O seu jornal me deu como secretário particular de S.Excia. o dr. Washington Luiz quando presidente de S. Paulo. Não o fui e me apresso em retirar dos ombros essa benemerência. E o faço com a máxima liberdade pois que pelo já experimentei posso afirmar a desnecessidade de qualquer título para que um brasileiro seja recebido fraternalmente por este povo admirável do Pará. Certo de que esta retificação terá acolhida no seu jornal, sou do Sr. redator o mais grato dos patrícios. ─ MÁRIO DE ANDRADE.

Pouco importa destacar, no caso, a gentileza do secretário e a elegância irônica de seu estilo. Mais valerá, à base de tais esclarecimentos, adiantar que só a custo se acharia o autor do Carro da Miséria entre aqueles modernistas que, segundo Ledo Ivo, apoiaram abertamente a candidatura de Washington Luiz e Júlio Prestes, expoentes da República Velha. (5) Ou do contrário não se apressaria em retirar dos ombros a benemerência que, junto com o título de “Doutor” outorgara-lhe por distração o noticiarista de “O Estado”.


E aqui chegamos, enfim, ao que de mais relevante se publicou em Belém por ocasião da visita do poeta: as entrevistas (duas) que ele concedeu à imprensa no dia 24 de maio de 1927( 6 ). (6)Porque jogam alguma luz sobre a história daqueles anos, mas também porque nos descortinam certas atitudes estéticas do entrevistado, valeria a pena examiná-las de perto e encerrar com elas a nossa investigação.


Acha-se a primeira das entrevistas na página de abertura de hoje extinto e quase esquecido “Correio do Pará, órgão do Partido Republicano Federal, e de que eram redator-chefe Julião Ausier Bentes e diretor-gerente Miguel Pernambuco Filho. Sem fotografia, mas com amplo destaque, traz por título “O Movimento modernista no sul do país” , a que se seguem quatro subtítulos sem maior importância. No intróito, o repórter não economiza elogios ao “brilhante escritor paulista”, apresentando-o ao público do Pará em termos bem lisonjeiros: “O autor do “Losango Cáqui”, que na corrente intelectual modernista de São Paulo é um dos vultos mais representativos, possui, já, o seu nome firmado nas letras nacionais, não só pelo aspecto original e verdadeiramente brasileiro que procura imprimir a todas as suas produções como pela maneira simples e formosa como descreve a beleza em todas as suas manifestações”. Pelo visto, não escapara ao provinciano jornalista o frisson nouveau daquele grupo que ele próprio rotularia, na pergunta inicial da conversa, de “brilhante plêiade que em São Paulo se filia à corrente modernista”. Quanto à entrevista em si – a que Mário acedeu “gentilmente de uma forma bem cativante “ – começa com uma rápida sinopse do poeta sobre a “nova corrente que em São Paulo, progredindo sempre, conquistou uma situação bastante promissora”. Na origem de tudo o dedo agitador de Oswald e o eco do polêmico artigo “O meu poeta futurista”, de 1921, que Mário (ou o repórter) dá como sendo do ano anterior: “Em 1920 Oswaldo de Andrade, que sem ser meu parente é um dos meus melhores amigos, publicou em um dos jornais paulistas um artigo me apresentando ao meio literário, que causou verdadeiro escândalo, desses escândalos que em vez de deprimir, consagram“. Seguem-se alguns comentários, curtos ou por alto, sobre os modernistas mais em evidência no momento, além de Oswald: Guilherme de Almeida, Menotti del Pichia – “o que maior bagagem literária possui na corrente modernista em S. Paulo” – o “prosador elegante e simples” Plínio Salgado, o “ensaísta de mérito” Couto de Barros, e Cassiano Ricardo, “um dos mais belos representantes da poesia paulista”. Na prosa, prossegue, “a maior figura é Paulo Prado, que atualmente escreve o “Retrato do Brasil”, ensaio sobre a tristeza brasileira, que está fadado a um ruidoso sucesso de livraria”. Pertencerá a Alcântara Machado, no entanto, “o melhor livro que o modernismo produziu até hoje” (Mário referia-se a Braz, Bexiga e Barra Funda, definindo-o e “estudo crítico sobre o bairro ítalo-brasileiro”). Do movimento no Rio de Janeiro, declara o entrevistado: “Depois da cisão provocada por Graça Aranha a literatura da Capital Federal não sabe que caminho tomar. As figuras mais características são inegavelmente Manuel Bandeira e Ronald de Carvalho, que refletem aspectos inteiramente diferentes na poesia”. E depois de ver em Álvaro Moreyra “um grande espírito que atingiu uma expressão pessoal admirável”, e no Primeiro Caderno, de Oswald, “um livro interessantíssimo, de ´blagues´, que tem revolucionado o meio literário de S. Paulo”, o autor dos Namoros com a Medicina acrescenta, elogiando a revista Esthetica: “O movimento modernisante mais interessante que o Rio produziu, foi a publicação da revista “Esthetica” dirigida por Prudente de Moraes Netto e Sérgio Buarque de Hollanda”. De sua obra pessoal aparecida até então, Mário considera Amar, verbo intransitivo “o meu livro mais representativo”, da mesma forma por que os contos de Primeiro Andar constituíram “um tratado retrospectivo sobre a minha vida literária”. Encerra-se a conversa com louvações do visitante ao aspecto caracteristicamente brasileiro de Belém, e em particular do Largo da Sé, !verdadeiro encanto, uma verdadeira maravilha de architectura”.


A segunda entrevista deste dia 24 de maio de 1927 estampou-se a “Folha do Norte” na primeira página, conferindo-lhe o título pouco expressivo – mas comum no tempo – de “Uma palestra com um espírito culto” e ilustrando-a com um retratinho redondo do poeta. Contornemos, além do fecho, a introdução florida do entrevistador, onde Mário aparece, “em companhia da ilustre senhora Olívia Guedes Penteado”, emitindo “impressões e conceitos numa prosa flexuosa e amena” e envergando outra vez o seu título de Doutor... Vamos logo ao questionário daquele dia, conservando, como o fizemos até agora, a grafia daqueles tempos:

─ Está satisfeito com a viagem?

─ Enormemente. Meu avô Leite Moraes, quando governador da província de Goiás, carregando meu pai como secretário, veio de rodada pelo Araguaya até aportar aqui em Belém. Como se vê, tenho na tradição os passeios fluviais pelo Brasil.

─ E pretende ir longe?

─ Assim, assim. É um passeio sem heroísmo o que fazemos. Estão decididas duas viagens: Amazonas acima até Iquitos e Madeira acima até Guajará-Mirim. Provavelmente daremos um pulo à Bolívia e, tempo sobrando, subiremos o Rio Negro e, na volta, visitaremos Marajó.

─ E não se assustam com o desconfôrto?

─ Não haverá desconfôrto. Todos aqui têm sido incansáveis em nos facilitar viagens e passeios. Vivemos em plena lua de mel com este povo, estas águas e terras. Evidentemente não é a mesma coisa dar uma volta de auto até o Souza e sacolejar na poeira da Madeira Mamoré; porém o conforto é coisa relativa, provém muito mais da elasticidade do corpo. Ora, tanto a senhora Guedes Penteado e senhorinhas Nogueira e Amaral, como eu, estamos acostumados no esporte diário. Corpo disposto leva gente até o fim do mundo, sem pesar.

─ E que acha de Belém?

─ Nem me fale. É um dos encantos do Brasil. O Brasil possue algumas cidades bonitas: o Rio, Belo Horizonte, Recife, São Paulo; mas, a todas estas falta carácter. Belém é como Ouro Preto, como Joinville, como Salvador; possui beleza característica (sic). Este céu de mangueiras, filtrando sobre a gente, produz uma ambiência absolutamente original e lindíssima. Vejo com terror que em certas ruas estão plantando árvores estrangeiras.

─ Há o problema da humanidade a resolver...

─ Será um problema ou uma fatalidade climática? Aliás, a solução do problema não implica importação de árvores da “estranja”. Essa arvoreta bem educada que andam plantando é insuportavelmente monótona e estúpida como um pato. Imagine só uma alameda arborizada e com tufos de assahyzeiros? Seria adorável e vivaz como esses mameluquinhos que andam nus nas praias afastadas. Com as mangueiras, os barcos e velas coloridas, e tantos outros encantos originais, vocês têm um thesouro de belleza nas mãos. Aproveitado sem espírito de imitação, Belém será a mais linda cidade equatorial.

─ E a architectura?

─ O Teatro da Paz é bom. Nazaré é admirável no seu luxo, embora não seja nada brasileira. Em todo caso, antes ela que a Cathedaral gothica pavorosa que estão construindo em São Paulo. E há um lugar sublime, que é preciso preservar de qualquer modificação: o largo da Sé. Só mesmo a Praça de São Francisco, em São João d‟el Rei, é tão bella como o largo da Sé daqui. Nem na Bahia se encontra um conjunto tão harmonioso, tão equilibrado e sereno. É uma preciosidade.

Nas linhas e entrelinhas da conversa em causa – na qual, adianta-nos o repórter, Mário revelou “fluência de fino ´causeur´ – cintilam partículas múltiplas do ideário modernista, a começar pela viagem em si, empreendida menos como jornada de turismo do que como peregrinação cognoscitiva da Amazônia. É que o “inferno verde” de Alberto Rangel e de Euclides da Cunha já se transformara, muito antes de 1927, no território por excelência mítico do Modernismo, entendendo-se que o escritor que o desconhecesse, que o não tivesse “sentido” através da experiência direta, incorria de certa forma numa transgressão intelectual .(7) “Querem conhecer a Amazônia”, é a manchete a que por duas vezes recorre, falando dos recém-chegados visitantes paulistas. “O Estado do Pará”. E mais tarde , às vésperas de a comitiva regressar a S. Paulo depois do périplo do grande vale, do Solimões a Iquitos e do Acre até a Bolívia, o mesmo órgão escreverá, da “distinta senhora” Penteado, que “veio à Amazônia no interesse de conhecer este longínquo e rico torrão da federação brasileira, tão desconhecido e ridicularizado pela gente sulista” (20-7-1927). Assim, por trás do “passeio sem heroísmo” das declarações à “Folha do Norte”, ou da “bonitíssima duma viagem” da carta a Bandeira, percebe-se todo um programa modernista de (re)conhecimento da terra, integrado num plano mais vasto ainda de revalorização da cultura brasileira à luz de nossa história, dos nossos costumes, da autenticidade de nossas tradições – enfim, da “nossa coisa nacional”, conforme expressão do próprio Mário num trecho do O Empalhador de Passarinho (“Uma suave rudeza”, reedição conjunta da Martins e do Instituto Nacional do Livro, S. Paulo-Brasília, 1972, p. 66). Certo, muito modernista de destaque, em obediência a tal programa, foi cair direitinho na arapuca do exotismo. Quando não se entregou de corpo e alma cantando aos quatro ventos as grandezas do país, ao mais apaixonado gênero de ufanismo, o que levaria Carlos Drummond de Andrade a anotar, num poema de Brejo das Almas (1934), que o Brasil já estava farto de nós e queria repousar de nossos terríveis carinhos... (8) Mário evidentemente, resistiu à tentação, e disto há provas cabais na entrevista que seguimos comentando.


Na Belém de 1927, por exemplo, ele preferirá o autêntico ao exótico, o que explica se encantasse com o Largo da Sé – “lugar sublime”, “uma preciosidade” – e tachasse de “nada brasileira”, embora “admirável no seu luxo”, a extravagante e bigarrée Igreja de Nazaré. Em caso de dúvida, porém, ficaria com ela e não com a catedral gótica de S. Paulo, simplesmente pavorosa”. Em verdade, nenhum dos templos poderia jamais seduzir o poeta. Faltava-lhes, antes e acima de tudo aquele “caráter” que o viajante sentira pulsar em Ouro Preto, em Joinville, em Salvador, e que emprestava a Belém, por isso mesmo, a sua “beleza característica”. Neste contexto, e não no de um extremado nacionalismo, é que deveríamos entender o “terror” do visitante ao presenciar, na capital do Pará, a substituição das mangueiras por árvores “da estranja”. Ao contrário destas últimas, as mangueiras, originárias da Índia tropical, já se haviam integrado à história e à fisionomia de Belém, faziam parte de seu “caráter”, pelo que a ideia de eliminá-las deveria quedar fora de cogitação. Aqui, além do mais, demonstrava Mário de Andrade uma consciência ecológica perfeita, pois que nenhuma árvore européia substituiria em beleza e funcionalidade, sob o sol do equador, a mangueira frutífera e frondosa. E quando o poeta sonha com uma alameda de açaizeiros, não faz mais do que prenunciar os paraísos arbóreos de Burle Marx, em que planta, paisagem e homem, coexistindo em sensual harmonia, sugerem dentro do mundo tropical uma concepção hedênica da vida. Saliente-se, por fim, a preocupação – também modernista – de prescrever a saúde através da higiene física, que na conversa acima se reflete no comentário sobre a elasticidade do corpo, adquirida com a prática do esporte diário. Daqui se poderia partir, bem entendido, à apologia que da existência ao ar livre propuseram vários modernistas, bastando lembrar o caso do dinamismo vital e até animal de Graça Aranha, espécie de Metástase brasileira dos paroxismos dionisíacos de Nietzsche. De qualquer modo, não nos interessa no momento a presença de Nietzsche no Brasil, assunto ainda por estudar, senão a presença de Mário de Andrade no Pará, assinalada sobremaneira nas fontes que estivemos explorando.


Três dias depois das entrevistas acima, a comitiva Penteado – e com ela o poeta-secretário – deixou Belém no rumo de Iquitos e escalas, dando início a uma exploração da Amazônia que duraria exatamente um mês. Aos 28 de junho, acha-se o grupo de volta à capital do Pará, de onde retornaria a S. Paulo a 1º de agosto, a bordo do Baependy. As colunas sociais que se ocuparam do fato, e foram muitas, igualmente anunciavam o retorno ao sul, pelo mesmo barco, do escritor português Gastão de Bittencourt, o homem que em 1946 publicaria em Lisboa, dedicando-o a Câmara Cascudo e à memória de Mário de Andrade, falecido no ano anterior, o seu A Amazônia no fabulário e na arte. A inteligência do tempo, como se vê, andava de namoro firme com o inferno verde, berço de Macunaíma, herói de nossa gente.


(1) ANDRADE, Mário de, Cartas a Manuel Bandeira. Rio de Janeiro, Organização Simões Editora, Editora, 1958, pp161, 163-164.

(2) São Paulo, Edart-São Paulo Editora, 1971, p 28

(3) Nesta mesma carta – datada de “por esse mundo de águas VI-27” e escrita, de bordo, um dia antes da chegada a Manaus – Mário recordará com nostalgia as horas de Belém, cidade que a Paulo Duarte ele confessou (op.cit.p.139) ser a sua preferida, depois de Florença. Da capital guajarina relembrava em especial as comidas e bebidas, as chuvas e as mangueiras, o Grande Hotel e o Teatro da Paz, para acabar admitindo sem rebuço: “Porém Belém eu desejo com dor, desejo como se deseja sexualmente, palavra”. Enquanto depoimento das reações de Mário frente ao sortilégio da Amazônia, é carta de incomum interesse para o biográfo, não o sendo menos para o crítico de literatura, se considerarmos o que de “amazônico” o poeta injetou no Macunaíma, na crônica, obra de antologia, “Tacacá e Tucupi” (Os Filhos da Candinha) e em passos outros de sua obra. Também poderia servir de texto-gênese da “Moda do Alegre Porto” (p. 182 da citada correspondência a Bandeira), curiosíssimo poema sobre Belém do Pará, de que a peça mais famosa de Manuel Bandeira, versando o mesmo tema, será irmã siamesa.

(4) “Mário de Andrade, secretário de D. Olívia”, Suplemento Literário de O Estado de São Paulo, 16-1-1972. Dois anos antes em Macunaíma e a viagem grandota (S. Paulo, Quarto Artes Editora), o mesmo jornalista escrevia, da imprensa de Belém, não consultou os jornais paraenses de 1927. E nem as Cartas a Manuel Bandeira, onde Mário confessa (p 165) que, na Amazônia, passava “por homem ilustre e uma grande inteligência aí do sul”.

(5) Modernismo e Modernidade, Rio de Janeiro. Livraria São José, p.16

(6) Será oportuno recordar aqui, pois que se relaciona com a visita de Mário e de D. Olívia à Amazônia, o capítulo “A Rainha do Café”, do romance Safra, de Abguar Bastos (Rio de Janeiro, José Olympío Editora, 1937), todo ele uma sátira apimentada da aventura de 1927. Citamos apenas, como amostra, os dois parágrafos de abertura: “Uma vez chegou à Vila a Rainha do Café”. Vinha de São Paulo, terra do café, com vestidos deslumbrantes. Chamaram-na, respectivamente, no Maranhão: a “ilustre”, no Pará: a “inconfundível”, no Amazonas, a “insigne”Rainha do Café. Teotonio, que ia passando, viu tudo. A Rainha levava no séquito duas jovens sobrinhas e um secretário famoso, não por ser secretário, mas em virtude de ser autor de dois livros que haviam assustado, sobremodo, a arte nacional (p 176).

(7) Alguns dos motivos subjacentes à mitificação da Amazônia dentro do Modernismo, o leitor os encontrará trabalhados com mão de mestre por Wilson Martins, no capítulo “1931 COBRA NORATO” de A Literatura Brasileira, v. VI, O Modernismo, S. Paulo, Editora Cultrix, 1964.

(8) Trata-se de “Hino Nacional” de consulta obrigatória para um entendimento adequado de algumas das ideologias do Modernismo, entrevistas sob o raciocínio irônico do poeta.

domingo, 24 de abril de 2011

Um poema para refletir na Semana Santa

de Gregorio de Matos,

DESENGANOS DA VIDA HUMANA, METAFORICAMENTE

É a vaidade, Fábio, nesta vida,
Rosa, que da manhã lisonjeada,
Púrpuras mil, com ambição dourada,
Airosa rompe, arrasta presumida.

É planta, que de abril favorecida,
Por mares de soberba desatada,
Florida galeota empavesada,
Sulca ufana, navega destemida.

É nau enfim, que em breve ligeireza
Com presunção de Fênix generosa,
Galhardias apresta, alentos preza:

Mas ser planta, ser rosa, nau vistosa
De que importa, se aguarda sem defesa
Penha a nau, ferro a planta, tarde a rosa?

sábado, 22 de janeiro de 2011

DOIS ASPECTOS DO DISCURSO LITERÁRIO: "PLEBISCITO E FAMIGERADO"

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARA
Reitor:
Daniel Coelho de Souza

PRO-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
Pro-Reitor:
Ronaldo de Araújo

CONSELHO EDITORIAL:

Albeniza de Carvalho e Chaves
Adherbal Meira Mattos
Horácio Schneider
Geraldo de Assis Guimarães
Meirevaldo Jonair de Paiva - Gerente do PROEDI
Ronaldo de Araújo - Presidente

PROEDI/SESU/MEC
Bassalo, Celia Coelho
Dois Aspectos do Discurso Literário: "Plebiscito e Famigerado" - Belém, Universidade Federal do Pará, 1982

Editado em Convênio MEC/SESU/PROEDI
37 p.

1. Contos brasileiros - História e crítica
2. Azevedo,Artur, 1856-1908 -Plebiscito - Crítica e interpretação - 3. Guimarães Rosa, João, 1908-1967. Famigerado - Crítica e interpretação
CDD - 869.930109
CDU -869.0(81) - 34

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ PRO-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO.
DOIS ASPECTOS DO DISCURSO LITERÁRIO
"PLEBISCITO E FAMIGERADO"

Textos para Discussão/1
CELIA COELHO BASSALO
Profa Assistente do Centro de Letras e Artes da UFPA
BELÉM 1982

C) Copyright do autor

Capa: Metamorphosis Inventos Visuais Ltda.

Correspondência para o autor: Centro de Letras e Artes - UFPA Departamento de Língua e Literatura Vernáculas Campus Universitário - Guama
66.000 - Belém - Pará- Brasil

TEXTOS PARA DISCUSSÃO

"Parte-se do princípio de que o trabalho científico se inicia pela colocação de um tema em nível embrionário e pouco a pouco se desenvolve, a media que o pesquisador amadurece o seu raciocínio critico, amplia a sua base empírica de demonstração e recebe contribuição de sua comunidade acadêmica.”

"Définir positivament le récit, c'est accréditer, peut-être dangereusement. l'idée ou le sentiment que le récit va de soi, que rien n´est plus naturel que de raconter une histoire. . . "

GENETTE, Gerard. Figures II, Paris, du Seuil, 1969, p. 49.

À Albeniza de Carvalho e Chaves, amiga e mestra, que me inspirou o amor e o interesse pela Teoria Literária


SUMÁRIO

DEDICATÓRIA .................................................................... VII
SUMÁRIO ...................................................................... IX
RESUMO ...................................................................... XI
INTRODUÇÃO..................................................................... 10
Plebiscito ................................................................... 11
Famigerado.................................................................... 15
CONCLUSÃO .................................................................... 25
BIBLIOGRAFIA ................................................................. 37
ANEXO ....................................................................... 28

RESUMO
'Plebiscito e "Famigerado" - em linhas gerais uma análise plural de seus constituintes ficcionais, numa leitura comparativa e opositiva desses constituintes. Em prioridade, a observação de diferentes níveis - linguísticos, temporais e diegéticos desses contos, assim como a constatação das formas simples e complexas do ato narrativo.
ABSTRACT

'Plebiscito'' and 'Famigerado"are, in a general way, a plural analysis of their fiction constituents, in a comparative and oppositive reading of such constituents. Mainly, the different linguistic, temporal and narrative levels of these short stories, as well as their simple and complex forms in the narrative act, were observed.

1 INTRODUÇÃO

Cada vez mais se afirma a ideia de que a Literatura não é aquilo de que se fala, mas o modo como se fala. Essa ideia já a encontramos, e muito concretamente na antiguidade clássica, segundo se pode constatar do lão, de Platão:

Sócrates - Qual será, então, o motivo de só revelares essa habilidade com relação a Homero, e não com referência e Hesíodo ou a outro qualquer poeta? Não trata Homero dos mesmos assuntos que os demais poetas? Não é a guerra o seu terra principal, a relação dos homens entre si, tanto os bons como os maus, os homens comuns ou os governantes, a maneira por que os deuses conversam entre si e com os homens, o que se passa no céu ou no Hades, o nascimento dos deuses e dos heróis ? Não foi com esses temas que Homero compôs suas epopeias?

Ião – Tudo isso é muito certo.

III – Sócrates – E então? Os demais poetas não desenvolveram esses mesmos temas?
Ião – Desenvolveram, Sócrates; não porem, da mesma maneira que Homero.'`

Fundamentados nessa afirmativa platônica é que selecionamos dois contos, de autores e épocas diferentes, "Plebiscito" e "Famigerado", de Artur Azevedo e Guimarães Rosa, respectivamente, ambos tratando de matéria afim, de vez que neles se procura definir, em situação de discurso, uma palavra, porém, distanciando-se no piano da narrativa. Esse distanciamento 6 o que tentaremos mostrar, fazendo uma análise em separado de um e de outro textos. "Plebiscito" e "Famigerado" funcionarão como elementos de comparação mútua, aquele por apresentar um certo uso a linguagem que já nos habituáramos a ver, diferente, portanto, do que acontece com este. Em "Famigerado" temos a exata ideia de que o discurso literário é nutrido não por formas estereotipadas, mas pela transformação delas em significantes sempre
novos, os quais carreiam consigo uma vasta gama de significados constituídos na sua maioria de imprecisões, indeterminações, etc. Com isso, não queremos dizer que esses significados, mal determinados pela sua própria natureza, não estejam presos a um sistema coerente e nem deixem de constituir um código. Em "Plebiscito" encontra-se uma certa "racionalidade arbitrária (BARTHES, 1977) da linguagem, ao contrario de "Famigerado", o qual apresenta uma certa "irracionalidade" (BARTHES, 1977)

Nesta análise, procuraremos observar os constituintes ficcionais, formados unicamente pela linguagem narrativa, aqui responsável pelo substrato sobre o qual estão incluídos esses constituintes, formando um mundo autossuficiente, sustentado exclusivamente pelos valores constituídos por ela, linguagem. Alem disso, tentaremos averiguar como o texto funciona e o porquê desse funcionamento no que diz respeito à produção de efeitos estéticos, estilísticos e semiológicos.

PLEBISCITO

"Plebiscito" é um dos contos em prosa de Artur AZEVEDO (1977, p. 286), marcante, por seu tom humorístico, jocoso e ate mesmo satírico.
Esse conto gira em torno do significado do vocábulo plebiscito e tem inicio com uma pergunta formulada a esse respeito por um menino a seu pai. Este, comerciante burguês, não sabendo respondê-la e não querendo humilhar-se diante da família, para conservar, como ele próprio o diz, a força moral que deve ter em casa,


"Não digo para não me humilhar diante de meus filhos! Não dou o braço a torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa!"

procura através de dissimulações variadas, esconder a sua ignorância a respeito do significado da referida palavra. No entanto, pressionado por sua mulher (a qual, no conto, estabelece, por meio de sua conduta, a contrastação, com a final idade não de se opor totalmente ao senhor Rodrigues, mas como elemento fundamental para evidenciar, por sua vez, a conduta do marido) para explicar ao filho o tal significado, acaba exasperando-se e, nervosamente, sai da sala de jantar onde a família se encontrava reunida, dirigindo-se para o quarto de dormir. Ai encontra exatamente a única coisa de que necessitava - um dicionário, onde verifica furtivamente o que quer dizer plebiscito. Em seguida, para manter a harmonia familiar, os filhos e a mulher do protagonista resolvem chamá-lo para que venha sentar-se novamente a sala de onde saíra num ímpeto de cólera. Era só isso que o negociante esperava, para dogmaticamente expor a significa; ao do vocábulo, vocábulo esse que constitui o "pivot" da questão. Nessa altura da narrativa, nova e última cena "teatral" e montada. O narrador prepara o ambiente para que o senhor Rodrigues alivie as tensões dos outros personagens, de vez que as suas próprias já as aliviara, ao esclarecer-Ihes a significação do referido vocábulo. Tudo isso é relatado através de fatos sucessivos em que um é a consequência inevitável do outro, constituindo, por isso mesmo, aquilo que BURKE (1969, p. 128) chama progressão silogística.

Possuindo apenas uma célula dramática, "Plebiscito" é elaborado, de certa forma, sob os moldes tradicionais, obedecendo a uma estrutura sintática linear, cuja linguagem reflete os padrões clássicos e, por isso mesmo normativos, exigidos e observados pelo autor.


AZEVEDO (1977, p. 285) demonstrou não querer separar-se do palco e, nesse conto, dividido intencionalmente em quatro partes ou quatro atos, ressalta a colaboração buscada no teatro para elaborar o conto. A primeira parte, conforme se pode observar claramente, é, de certa forma, semelhante a uma indicação cênica:

"A cena passa-se em 1890. (. . .) Silêncio."

Essa aparente disposição cênica, vista não por um ângulo puramente teatral e sim literário, funciona como um prólogo, possuindo valor muito mais ontológico do que propriamente artístico. É certo que, com esse recurso, o autor de Contos fora de moda, utilizou o processo da economia verbal ao aproveitar esse mesmo prólogo para apresentar, de maneira sucinta, a sua cosmovisão romântica e patriarcal de uma pequena família burguesa, caracterizada aí, quase que unicamente, pela maneira pantagruélica de comer do senhor Rodrigues, "comer como um abade", detalhe mínimo, convencional, mas altamente identificador tanto do meio social, em que a família vivia quanto do aspecto caricatural atribuído pelo narrador ao protagonista, além de lhe conferir, a nosso ver, um caráter semi universalizante, de vez que representa, de certa forma, uma classe social complexa. Essa complexidade da classe social não lhe confere, no entanto, a possibilidade de torná-lo personagem redondo, de vez que ele não é capaz de surpreender o leitor de modo convincente. (FORSTER,.1969, p 61).

Os membros da família, em número de quatro (número máximo exigido pelo conto tradicional) serão os únicos personagens, todos eles participando ativamente do processo narrativo.

Ao dar-se início ao primeiro segmento, na movimentação indireta das figuras, é que se pode ver a transformação dessa cena estática, á qual nos referimos mais acima, num todo organizado e dinâmico, todo esse que constitui a linguagem literária. Queremos evidenciar que essa cena a qual chamamos estática e que está muito próxima de uma certa realidade ou verdade, quer pela sua clareza, quer pela sua objetividade, não está ligada a um referente
exterior a ela, por isso mesmo, determinado e preciso, mas, ao contrário, afasta-se cada vez mais dessa realidade ao constituir a sue própria, feita unicamente de palavras.
Empregando o discurso direto em quase todo o conto, o narrador apresenta os vários enunciados que aí aparecem, assinalados no plano formal por verbos declarativos, tais como: "perguntar", "chamar", "dizer", etc. . . Usando esse recurso, o autor consegue fazer com que os personagens, através da forma expressiva desse tipo de discurso, elevem-se das sues situações e tornem-se vivos e operantes diante do leitor-ouvinte.
Ao obedecer rigidamente os padrões tradicionais de estímulo, resposta imediata (recurso explorado aprioristicamente no texto de tempo cronológico) em todas as situações de caráter indagativo, o autor confere um maior dinamismo ao tempo da narrativa ao captar um flagrante sócio-burguês. Esse dinamismo aqui é reforçado também não só pela naturalidade elaborada da diegese, como pela combinação adequada do texto expositivo a fala dos personagens, preservando a indissociabilidade intuição-expressação de que fala Croce. ap. SILVA (1973, p. 218).
Outra vantagem da utilização desse discurso é que o leitor vê-se obrigado a participar diretamente da tessitura verbal da narrativa, de vez que, por uma espécie de magia, também verbal, ale, leitor, é colocado sem intervenções, diante dos personagens e, fortemente envolvido por eles tam a intenção de participar da ação. Com isso opera-se um vínculo maior entre ambos, ressaltando a influência exercida pelo teatro (gênero que, como se sabe, apoia-se nesse tipo de discurso) de vez que uma das características do público dramático é justamente o querer cooperar como a representação cênica dos personagens, como acontece no teatro dos dias atuais.*
Aqui e ali, AZEVEDO (1977, p 286) foge um pouco do
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* Parece-nos oportuno salientar as ideias de Wellek e Warren com relação a "Literatura e as outras artes' : assinalam eles que "por vezes a literatura tom tentado por forma definida, alcançar os efeitos do pintura - tornar-se pintura com palavras -, ou atingir os efeitos do música - transforma-se em música. Em certas ocasiões, a poesia tentou mesmo tornar-se 'escultórica'. (. . .) Mais duvidosa é, porém, a questão de indagar se a poesia pode produzir os efeitos do música. . ." A posição desses estudiosos vale pare o caso em questão. Embora se possa afirmar que "Plebiscito" é uma pequena comédia burguesa por certas objetividades que apresenta, não estamos contudo, estabelecendo paralelo entre as duas artes: a literatura e o teatro, de vez que cada uma deles dispõe de recursos próprios, os quais lhes conferem plena autonomia. Daí concordamos com Wellek o Warren e podermos dizer que "Plebiscito" não pode ser considerado mais teatro que literatura, pelo fato de ele ser quase inteiramente dialogado e possuir uma indicação cênica entre outros recursos. WELLEK, René & WARREN, Austin, Teoria da literatura. Lisboa, Europa-América, 1962. p. 158-159.

tradicionalismo acima referido a que o conto estava vinculado como estrutura mais ou menos fixa. Deve-se isto ao fato de o autor utilizar o passado anterior ao episódio desenrolado no presente, como elemento de certa importância, de vez que não economiza, mas, ao contrário, alarga as fronteiras da narrativa, num elástico jogo temporal ao mencionar os acontecimentos precedentes,

"Já outro dia foi a mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou, falou, e o menino ficou sem saber."

para com isso conferir maior dinâmica a sua narração

Não obstante o autor haver atribuído relevância a um episódio passado, o mesmo não acontece com relação ao espaço em que a ação é desenvolvida. Esta transcorre unicamente numa sala de jantar, lugar escolhido para que seja evidenciado o cl ímax da narrativa.
O outro aposento mencionado, isto é, o quarto de dormir, assume o lugar não só de "porto seguro" para o senhor Rodrigues, como desempenha uma espécie de função catártica em que todas as tensões sofridas por esse mesmo senhor aí terminam, ao lhe serem restituídas a paz e a calma interior de que naquele momento tanto necessitara. Nesse ultimo aposento havia o remédio miraculoso para os seus males, não as "gotas de flor de laranjeira, mas um dicionário. . ."

Nesse segundo aposento o autor não consegue obter igual intensidade dramática oferecida pelo ambiente anterior. Para nós, o conto de Artur de Azevedo deveria ter aí, sua conclusão, pois assim guardaria o caráter de surpresa tão característico desse tipo de composição, tal como acontece, aliás, com as adivinhações.

A nosso ver, AZEVEDO, como narrador onisciente, não necessitaria do personagem da menina. Esta funciona como um elemento desnecessário, estranho ao texto, amorfo, uma espécie de deus ex-machina, introduzido apenas para "salvar" o senhor Rodrigues da humilhação a que estava condenado a sofrer, e dar uma solução favorável ao angustiante e insolúvel problema pessoal do referido senhor. O conto em si não reclama tal inclusão, de vez que a sua unidade de ação já estava completa, isto é, a convergência de todos os dados necessários para que houvesse núcleo dramático achava-se plenamente configurada. A expansão do texto enfraquece, daí por diante, a narrativa, e o leitor de "Plebiscito" ao presenciar sair do quarto o protagonista já antevê o que vai acontecer ate o final da estória. Isso vem quebrar uma das regras do código retórico, a de que o leitor não pode a priori, saber o que vai acontecer, mas à medida que o discurso se desenrola é que as regras surgidas com e na obra vão-se re-velando, conforme as exigências do próprio código literário. Dai porque discordamos de MONTELLO (1956, p. 41) quando afirma este que Artur Azevedo "sem uma palavra demais, com os movimentos da pequena comédia perfeitamente encadeados termina o conto da melhor forma teatral". A nosso ver, o segundo e o terceiro segmentos, olhando-se do ponto de vista da narrativa, constituem elementos pouco relevantes.

Com a distensão do texto, o movimento rítmico que vinha acompanhando a narrativa, num processo gradativo, em que a maior precipitação é marcada pela saída brusca do protagonista, cai e passa a fazer com que esses dois últimos segmentos fluam lenta e monotonamente.

Quanto ao tempo, a narrativa se apresenta presa ao movimento cronológico, objetivo, chegando mesmo a precisão de marcar o ano em que a cena se passou - 1890. Isto evidencia a rigidez estabelecida convencionalmente pelo homem para controlar o seu relacionamento com os demais membros da comunidade em que vive. Os momentos "angustiantes" vividos pelo senhor Rodrigues não chegam a constituir desacordo entre o tempo cronológico e o espiritual e as suas aflições não representam, em nenhum instante, sofrimento interior propriamente dito. Em "Plebiscito" não há choque entre esses dois tempos, daí a narrativa discorrer normalmente e sem alterações de qualquer natureza, de vez que os personagens do conto são seres destituídos de profundidade psicológica, possuindo apenas o "eu artificial" de que nos fala BERGSON, (1959, p. 1258).

FAMIGERADO

Famigerado o segundo conto dos vinte e um que compõem Primeiras estórias se articula em torno da definição do vocábulo que o denomina.

Possui apenas dois interlocutores, o jagunço Damásio, conhecido por suas estórias como homem feroz e perigosíssimo e alguém destituído intencionalmente de nome, mas que retratado pela narrativa poderá ser um boticário, morador da região em que se passa o "evento".
Damásio, acompanhado de mais três homens a cavalo veio da Serra (?), à procura desse boticário, para interrogá-lo a respeito do significado do vocábulo famigerado, que, para ele, jagunço, parecia ser "nome de ofensa", e lhe fora atribuído por um "moço do Governo".
Obtida a resposta, diferente da esperada, e presa unicamente a oralidade dos tratos, em que a honra toma papel relevante, e os documentos valem menos que a palavra empenhada e a promessa ou compromisso vale por um sinal (MOREIRA, 1959, p. 43), o "brabo sertanejo" despediu seus três acompanhantes, vindos apenas para testemunhar a explicação fornecida pelo homem instruído, e partiu de volta no seu alazão, após haver agradecido e apertado a mão de quem lhe tirara a indecisão do foro íntimo.

Embora breve, esse discurso não é desenvolvido no espírito como um simples fato pretérito e consumado; vai mais além, de vez que o diálogo estabelecido entre os dois personagens traz consigo a revelação psicológica de duas criaturas. Daí por que, nessa pequena estória, aparentemente simples, o narrador mergulha no âmago da linguagem, procurando proustiana e/ou bergsonianamente as camadas localizadas além do domínio consciente, a fim de precisar e registrar os elementos conflitantes e decorrentes da ausência de equilíbrio entre os dois tempos: o cronológico e o psicológico. Isso vem evidenciar a interioridade do enredo, aqui não encarado como a simples sucessão de fatos encadeados entre si, mas como a tentativa, por parte do narrador-protagonista, de querer exteriorizar e transmitir a realidade vista como um todo, de vez que os elementos que constituem o mundo e a obra, emergem violentamente no espaço-tempo, tal como são por ele percebidos, ;to é, a um só tempo, a um só instante, conduzindo assim o leitor a um estado de espírito ao qual outro estado de espírito pode adequadamente seguir-se, constituindo não uma progressão silogística, mas uma progressão qualitativa (BURKE,1969, p 128-9).

Embora curta, a estória, conforme nos referimos no início, contém profundidade psicológica, ressaltada, sobretudo, pela complexidade comportamental do narrador-protagonista e revelada por meio da motivação dos signos linguísticos. Esses signos trazem em si uma simbologia própria (pois o pensamento ao elaborar formas não tem alcance geral), representada na e pela linguagem, tomada esta, obviamente, como único suporte do discurso narrativo.

A complexidade da narrativa obedece a uma ordem gradativa e, conforme se pode observar desde o inicio, "Famigerado" filia-se, também, ao mundo folclórico, ligado a certas raízes míticas dos contos sertanejos, nos quais as estórias dos jagunços, inspirando violência, medo, conferem a eles um certo caráter que o vinculam a essas raízes.

"Foi de incerta feita - o evento. (. . .) Eu estava em casa, o arraial sendo de todo tranquilo. Parou-me à porta o tropel. Cheguei a janela. . ." (ROSA, 1967, p. 9)
O narrador poderia substituir o primeiro sintagma pela seguinte estrutura: "Era uma vez. . ." e, com essa técnica simples, despertar o leitor, motivado, agora, pela curiosidade que lhe é inerente, para seguir o caminho traçado pela própria linguagem e tecido pelo próprio texto.

Não obstante afirmarmos que o conto esteja vinculado as raízes míticas do sertão, encarado este como o repositório e persistência de tradições, não queremos dizer, com isto, que se trata de um conto tipicamente nativo, próprio, autóctone, pois esse tipo de conto é cada vez mais raro de ser encontrado. O que existe, e talvez este seja um dos casos, é a miscigenação de uma grande variedade de estórias sobre o sertão que se combinam entre si para formar nova trama, cuja solução vai depender do use intencional da linguagem, cada vez mais simbólica, ligada a fonte quase sempre longínquas e muitas vezes perdidas no espaço-tempo.

Apoiados nisso é que se pode ver na estória do jagunço ou no jagunço com suas estórias um tipo universal, complexo, não pertencente a um sertão determinado, mas ao mundo sertanejo, mundo esse que explode, se amplia e se expande através do e no discurso narrativo, como se este pudesse corresponder a uma supernova*; estrela que explica a origem do universo.

Nesse conto, com base na dicotomia jagunço-boticário, Guimarães Rosa como narrador onisciente, procura, por meio de um ato da consciência e não de uma simples ação voluntária, penetrar na essência da linguagem ao tratá-la de feição especial, particular, transgredindo a rejeitando o código linguístico, isto é, as normas e regras impostas e pontificadas pela gramática normativa, e procura também renovar e elaborar a sua própria linguagem, sem, contudo, alterar a função primordial do texto, a qual estabelece o relacionamento e daí a comunicação entre os homens. Para isso apóia-se não numa realidade objetiva, cujo referente exterior está preso a heteronomia da linguagem denotativa, monossignificativa, etc., mas na autonomia do discurso literário, conotativo, plurissignificativo e, além disso auto-referencial; cria dois tipos, em que um representa a oposição linguística do outro. Nessa oposição, dois níveis de linguagem, duas concepções do mundo e duas psicologias fazem-se ressaltar. Essas linguagens trazem consigo a opacidade e a transparência de que falam Todorov e Lefebve, ora fazendo o leitor perceber

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*Aproveitamos aqui, para explicar, de maneira sucinta que é Supernova é uma estrela que se condensou e num determinado momento explodiu; seus fragmentos espalharam-se em todo o universo. Este, por sue vez, é formado de várias galáxias e estas formadas de várias estrelas, algumas delas com um sistema planetário. Um determinado planeta desse sistema complexo receberá e informação da explosão. A ciência auto-questiona-se e responde afirmativamente: Essa pequena informação será suficiente para explicar e totalidade de supernova? - Sim. (STRUVE, Otto. A evolução dos estrelas. In: A nova astronomia. S.Paulo, Scientific American. IBRASA, 1959, p 134)
o próprio discurso e não somente a sua significação, ora propondo para linguagem literária, a presentificação das coisas descritas e não o próprio discurso.*
É com essa segunda acepção que o leitor tem a impressão de ultrapassar o âmbito da linguagem e defrontar-se com a própria vida cotidiana, colocando-se em face ao referente, onde o domínio e o mecanismo da percepção tomam o lugar prioritário que lhes é inerente e preso, portanto, ao objeto existente, concreto, etc., diferente, do mecanismo da imaginação que conforme se sabe, liga-se ao objeto possível.
Justamente partindo desses dois mecanismos é que se pode constatar e afirmar serem os objetos evocados no texto, ("arma", "chapéu", "sela", "cinturão", "jereba" etc.); a descrição total da cena surpreendida pela ótica do boticário; a atitude em si e em conjunto dos dois personagens operantes bem como as situações nas quais elas se embricam, a configuração do que se convencionou chamar nível diegético. É nesse nível que aflora o desequilíbrio linguístico-temporal de que falamos anteriormente. Vejamos, pois, de maneira isolada, o ponto de partida desse desequilíbrio.
Reproduziremos, inicialmente, por nós agrupadas as falas do jagunço, isto é, o uso individual que Dámasio-personagem, como falante, faz do sistema linguístico, combinando as várias possibilidades do código da língua, as quais lhe permitem a exteriorização de seu pensamento, para, em seguida, reproduzirmos nos mesmos moldes a fala do narrador-protagonista.
Ao retratarmos essas duas falas, assim encadeadas, em que a do narrador protagonista assume um caráter mais descritivo, vale salientar que elas constituem, em si, uma unidade ou como quer Aristóteles na Poética, um todo, de vez que ambas possuem aquilo que o filósofo admitia para constituir-se uma fábula: princípio, meio, fim. (ARISTOTELES, 1964, cap. 7, p. 274)

2 - "Eu vim preguntar a vosmecê uma opinião sua explicada.. .

4 - Vosmecê é que não me conhece. Damasio, dos Siqueiras... Estou vindo da Serra...

6 - Saiba vosmecê que, na Serra, por o ultimamente, se compareceu um moço do Governo, rapaz meio estrondoso.. . Saiba que estou com ele à revelia ... Cá eu não quero questão com o Governo, não estou em saúde nem idade... O rapaz, muitos acham que ele é de seu tanto esmiolado...

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Apud. LEFEBVE, Maurice-Jean. Estrutura do discurso da poesia e da narrativa. Coimbra, Almedina, 1975. p. 44.
Sobre opacidade vela-se também Ensaios Críticos, citado na bibliografia.
8 - Vosmece agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é fasmisgerado. . . faz-megerado.. . Falmisgeraldo.. . familhasgerado...?

10 - Saiba vosmecê que saí ind'hoje da Serra, que vim, sem parar, essas seis léguas, expresso direto pra mor de lhe preguntar a pregunta, pelo claro...

12 - Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém ciente, nem tem o legítimo - o livro que aprende as palavras... E gente pra informação torta, por se fingirem de menos ignorância... Só se o padre, no São Ão, capaz, mas com padres não me dou eles logo engambelam... A bem. Agora, se me faz mercê, vosmecê me fale, no pau da peroba, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já lhe preguntei?

14 - Sim senhor...

16 - Vosmecê declare. Estes of são de nada não. São da Serra. Só vieram comigo, pra testemunho...

18 - Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender. Mais me diga: é desaforado? É caçoável? E de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?

20 - Pois.. . e o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?

22 - Vosmecê agarante, pra a paz das mães, mão na Escritura?

24 - Ah, bem!...

26 - Vocês podem ir, compadres. Vocês escutaram bem a boa descrição...

28 - Não há como que as grandezas machas duma pessoa instruída!

30 - Sei lá, às vezes o melhor mesmo pra esse moço do Governo, era i-se embora, sei não...

32 - A gente tem cada cisma de dúvida boba, dessas desconfianças... Só pra azedar a mandioca ... (ROSA, 1967, p 10-13)

Se tomados isoladamente, conforme o fizemos, cada um dos dois discursos configurar-se-á de maneira diversa. Este do jagunço, por exemplo, corresponde a um simples desenrolar progressivo, em que não há preâmbulos nem digressões de qualquer natureza. O que se observa nele é um equilíbrio entre o pensar e o dizer do sertanejo, em que os fatos se sucedem uns aos outros sem maiores alterações. Esses fatos podem mesmo até ser cronometrados, de vez
que a superposição dos três tempos, o da aventura, o da escritura e o da leitura, estudados por Michel Butor (BUTOR, 1975, p. 118) não constituem problemas de ordem técnica por parte do autor.

0 tempo da aventura, sob o ponto de vista do jagunço, flui normalmente (com uma pequena alteração durante o percurso de seis léguas) e, os elementos básicos componentes da essência de qualquer narrativa simples, clara, objetiva, de natureza literária ou não, tais como: o quê, quem, quando, onde, porquê, por isso, são aí colocados pelo autor e respondidos sem dificuldades pelo leitor, sem nenhuma objeção por parte daquele, a fim de não quebrar a linearidade, a rapidez e a brevidade do discurso do velho, cansado, mas valente sertanejo.

0 mesmo acontece com relação ao tempo da escritura, pois ainda hoje estamos impregnados do espírito da época em que viveram os jagunços, ou seja, o inicio do nosso século, onde tudo ainda nos parece natural e coerente. Esse não distanciamento temporal conduz o leitor a uma não dissociação da já decadente época da história sertaneja. Com isso, não haverá desajuste por parte do leitor que sentirá e compreenderá, na sua totalidade, o monólogo ou a estória de Damásio.

A harmonia entre os dois primeiros tempos reflete, com efeito, o comportamento e as condições sociais em que viveu esse tipo de homem. Assim sendo, compreende-se que o vocabulário usado por esse personagem seja muito reduzido, haja vista, o desconhecimento integral da semântica do vocábulo famigerado, que para ele significava apenas "desaforado", "caçoável", "arrenegar", "farsância" e finalmente "nome de ofensa". Como se vê, o seu conhecimento não estava desligado de uma certa verdade, pois os malfeitores também eram assim denominados. 0 importante a notar em tudo isso é que no conto a semi-ignorância do termo marca o inicio, o ponto de partida, embora superficial, dos "conflitos" desse personagem.

"A gente tem cada cisma de dúvida boba, dessas desconfianças. . . Só pra azedar a mandioca. . ."(ROSA, 1967, p. 13).

Diante do exposto, pode-se pensar em estabelecer uma diferença entre o ser do homem do sertão e o ser do homem do litoral. Damásio representa, pois, a ignorância, o reflexo de uma acracia e finalmente o espírito talionístico, (M0REIRA, 1959, p. 42) três elementos que contribuem de maneira decisiva para a formação da psicologia do sertanejo em particular e do sertanejo em geral, os quais diferem e mesmo opõem-se a maneira de ser do homem litorâneo.

Damásio é a configuração desse especial modo de ser, plasmado pela linguagem.

1 - Foi de incerta feita - o evento. Quem pode esperar coisa tão sem pds nem cabeça? Eu estava em casa, o arraial sendo de todo tranquilo. Parou-me à porta o tropel. Cheguei à janela.

Um grupo de cavaleiros. Isto é, vendo melhor: um cavaleiro rente, frente d minha porta, equiparado, exato; e, embolados, de banda, três homens a cavalo. Tudo, num relance, insolitíssimo. Tomei-me nos nervos. O cavaleiro êsse-o oh-homem-oh- com cara de nenhum amigo. Sei o que é influência de fisionomia. Saíra e viera, aquele homem, para morrer em guerra. Saudou-me seco, curto pesadamente. Seu cavalo era alto, um alazão; bem arreado, ferrado, suado. E concebi grande dúvida.


Nenhum se apeava. Os outros, tristes três, mal me haviam olhado, nem olhassem para nada. Semelhavam a gente receosa, tropa desbaratada, sopitados, constrangidos-coagidos, sim. Isso por isso, o que o cavaleiro solerte tinha o ar de regê-los: a meio gesto, desprezivo, intimara-os de pegarem o lugar onde agora se encostavam. Dado que a frente da minha casa reentrava, metros, da linha da rua, e dos dois lados avançava a cerca, formava-se ali um encantoável, espécie de resguardo. Valendo-se do que, o homem obrigara os outros ao ponto donde seriam menos vistos, enquanto barrava-lhes qualquer fuga; sem contar que, unidos assim, os cavalos se apertando, não dispunham de rápida mobilidade. Tudo enxergara, tomando ganho da topografia. Os três seriam seus prisioneiros, não seus sequazes. Aquele homem, para proceder da forma, só podia ser um brabo sertanejo, jagunço ate na escuma do bofe. Senti que não me ficava útil dar cara amena, mostras de temeroso. Eu não tinha arma ao alcance. Tivesse, também, não adiantava. Com um pingo no i, ele me dissolvia. O medo é a extrema ignorância em momento muito agudo. O medo O. O medo me miava. Convidei-o a desmontar, a entrar.

Disse de não, conquanto os costumes. Conservava-se de chapéu. Via-se que passara a descansar na sela, decerto relaxava o corpo para dar-se mais à ingente tarefa de pensar. Perguntei: respondeu-me que não estava doente, nem vindo à receita ou consulta. Sua voz se espaçava, querendo-se calma; a fala de gente de mais longe, talvez são franciscano. Sei desse tipo de valentão que nada alardeia, sem farroma. Mas avessado, estranhão, perverso brusco, podendo desfechar com algo, de repente, por um és-não-és. Muito de macio, mentalmente, comecei a me organizar. Ele falou:

3 - Carregara a celha. Causava outra inquietude, sua farrusca, a catadura de canibal. Desfranziu-se, porém, quase que sorriu. Daí, desceu do cavalo; maneiro, imprevisto. Se por se cumprir do maior valor de melhores modos; por esperteza? Reteve no pulso a ponta do cabresto, o alazão era para paz. O chapéu sempre na cabeça. Um alarve. Mais os ínvios olhos. E ele era para muito. Seria de ver-se: estava em armas -e de armas alimpadas. Dava para se sentir o peso da de fogo, no cinturão, que usado baixo, para ela estar-se j ao nível justo, alemão, tanto que ele se persistia de braço direito pendido, pronto meneável. Sendo a sela, de notar-se, uma jereba papuda urucuiana, pouco de se achar, na região, pelo menos de tão boa feitura. Tudo de gente brava. Aquele propunha sangue, em suas tenções. Pequeno, mas duro, grossudo, todo em tronco de árvore. Sua máxima violência podia ser para cada momento. Tivesse aceitado de entrar e um café, calmava-me. Assim, porem, banda de fora, sem a-graças de hóspede nem surdez de paredes, tinha para um se inquietar, sem medida e sem certeza.

5 - Sobressalto. Damázio, quem dele não ouvira? O feroz de estórias de léguas, com dezenas de carregadas mortes, homem perigosíssimo. Constando também, se verdade, que de para uns anos ele se serenara -evitava o de evitar. Fie-se, porém, quem, em tais tréguas o pantera? Ali, antenasal, de mim a palmo! Continuava:

7 - Com arranco, calou-se. Como arrependido de ter começado assim, de evidente. Contra que aí estava com o fígado em más margens; pensava, pensava. Cabismeditado. Do que, se resolveu. Levantou as feições. Se e que se riu: aquela crueldade de dentes. Encarar, não me encarava, só se fito à meia esguelha. Latejava-lhe um orgulho indeciso. Redigiu seu monologar.

O que frouxo falava: de outras, diversas pessoas e coisas, da Serra, do São Ão, travados assuntos, insequentes, como dificultação. A conversa era para teias de aranha. Eu tinha de entender-lhe as mínimas entonações, seguir seus propósitos e silêncio. Assim no fechar-se com o jogo, sonso, no me iludir, ele enigmava. E, pá:

9 - Disse, de golpe, trazia entre dentes aquela frase. Soara com riso seco. Mas, o gesto, que se seguiu, imperava-se de toda a rudez primitiva, de sua presença dilatada. Detinha minha resposta, não queria que eu a desse de imediato. E já aí outro susto vertiginoso suspendia-me: alguém podia ter feito intriga, invencionice de atribuir-me a palavra de ofensa àquele homem: que muito, pois, que aqui ele se famanasse, vindo para exigir-me, rosto a rosto, o fatal, a vexatória satisfação?

11 - Se sério, se era. Transiu-se-me.

13 - Se simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esses trizes:

- Famigerado?

15 - e, alto, repetiu, vezes, o termo, enfim nos vermelhões da raiva, sua voz fora de foco. E já me olhava, interpelador, intimativo apertava-me. Tinha eu que descobrir a cara. –Famigerado? Habitei preâmbulos. Bem que eu me carecia noutro ínterim, em indúcias. Como por socorro, espiei os três outros, em seus cavalos, intugidos até então, rnumumudos. Mas, Damázio.

17 Só tinha de desentalar-me. O homem queria estrito o caroço: o veri rérbio.
- Famigerado é inóxio, de "célebre" ", "notório" ", "notável ". . .

19 - Vilta nenhuma, nenhum doesto. São expressões neutras, de outros usos. . .

21 - Famigerado? Bem. E: "importante" , que merece louvor, respeito...

23 - Se certo! Era para se empenhar a barba. Do que o diabo, então eu sincero disse:
- Olhe: eu, como o sr. me vi, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora destas era ser famigerado – bem famigerado, o mais que pudesse!. . .

25 - soltou, exultante.

Saltando na sela, ele se levantou de molas. Subiu em si, desagravava-se, num desafogaréu. Sorriu-se, outro. Satisfez aqueles três: -

27 - e eles prestes se partiram. Só ai se chegou, beirando-me a janela, aceitava um copo d´água. Disse: -

29 - Seja que de novo, por um mero, se torvava? Disse: -

31 - Mas mais sorriu, apagara-se-lhe a inquietação. Disse: -

33 - Agradeceu, quis me apertar a mão. Outra vez, aceitaria de entrar em minha casa. Oh', pois. Esporou, foi-se, o alazão, não pensava no que o trouxera, tese para alto rir, e mais, o famoso assunto.

Por outro lado, a fala do narrador-protagonista apresenta complexidade, justificada não só em oposição aos três elementos acima referidos, mas por uma sucessão, ora crescente, ora decrescente, de estados de espírito.

Essa última complexidade ressalta, sobremaneira, o desequilíbrio temporal e espiritual revelado, desde o início do conto, desequilíbrio que tem como ponto de partida o olhar lançado por esse personagem a chegada do tropel ao tranquilo arraial. Esse arraial e o espaço exterior onde se desenrolará a ação.

"Eu estava em casa, o arraial sendo de todo tranquilo. Parou-me à porta o tropel. Cheguei á janela (...) Dado que a frente de minha casa reentrava, metros, da linha da rua, e dos dois lados avançava a cerca, formava-se ali o encantoável, espécie de resguardo." (ROSA, 1967, p. 9)

de vez que, do espaço interior, isto e, dentro da casa do narrador-protagonista, nada e mencionado no conto.

Enfatizamos intencionalmente o olhar, pois este e sumamente importante e serve para modificar a aglomeração das coisas reveladas subjetivamente. Com isso, não queremos dizer que o eu do texto esteja ligado ao eu biográfico, social, ou especificamente determinado. Na estrutura narrativa, ele funciona apenas como uma imagem metafórica do ser interior no dizer de Lefebve. (LEFEBVE, 1975, p 46)

No texto, o ver e o visto desempenham papel relevante ao evidenciarem violentas reações nervosas (emoção-choque) organicamente extensivas, reações essas que se desenvolvem em cadeia, sofridas pelo narrador-protagonista (que da sua janela "tudo enxergara, tomando ganho da topografia'") e estimuladas pela presença física do próprio jagunço. Daí podermos inferir que os sintagmas:

"Tomei-me nos nervos."(...)
"Senti que não ficava útil dar cara amena, mostras de temoroso. (...) "" O medo O. O medo me miava."(...)
"Sobressalto. Damásio, quem dele não ouvira? O feroz de estórias de léguas, com dezenas de carregadas mortes, homem perigosíssimo."(... )
"E já aí outro susto vertiginoso suspendia-me. . ."(ROSA, 1967, p, 9-11)

transformaram o ver num receber, portanto, em algo ativo, operante, capaz de modificar esses mesmos sintagmas em reações gradativas facilmente depreendidas de apreensão, temor, medo, pavor e finalmente vertigem. Essas reações, embora situadas no nível da consciência que antecede a fala, momento da não articulação e do não pronunciamento, são perfeitamente coerentes com o desenrolar dos acontecimentos.

Assim sendo, essas manifestações passam a constituir imagens não por se apresentarem de maneira simultânea, como jogo verbal, em que as peças, isto e, as palavras, são distribuídas de maneira precisa, justa, umas não podendo ser substituídas por outras sem que haja perda significativa para o discurso do narrador-protagonista. Por outro lado, essas imagens oferecem uma larga abertura à série ilimitada de significações que acarretam. Portanto, o que se observa no texto é uma certa realidade entrando em tensão com o imaginário, para criar, em seguida, outra realidade ou outro nível diegético que, por sue vez, revelará e transmitirá outras significações e com elas novas tensões.

Retornando ao pensamento de Butor em que o tempo da escritura vai frequentemente refletir-se na aventura por intermédio do narrador, surge, como ele próprio enfatiza, o problema de uma progressão de rapidez entre esses diferentes escoamentos (BUTOR, 1975, p 118). Isso é o que se observa no tempo da aventura em relação narrador-protagonista. Esse tempo é marcado por aquilo que Bergson entende por durée.*

No momento em que o narrador-protagonista, principalmente no seu solilóquio, expressa as emoções por ele sofridas, o que se faz presente e pertinente é um recordar ligado a etimologia da palavra, do latim "cor-cordis", isto é, "de novo ao coração". Ao recontar a estória ele não o faz guardando o distanciamento temporal que o início do conto registra e que a própria estrutura narrativa reclama,

"Foi de incerta feita -o evento." (ROSA, 1967, p. 9)

mas reproduz o passado, revivendo-o intensamente. É oportuno
________________________

* BERGSON, Henri. 1959.Oeuvres. Paris, Presses Universitaires de France, p. 1315. Esse tempo, a durée dos estados interiores corresponde pare Bergson a matéria da intuitação metafísica: a apreensão do objeto no que ele tern de essencial e de próprio (atingindo, portanto, o absoluto) e que só é conseguido, não por meio da tessitura de abstrações, mas por uma submersão pare além da tessitura simbólica da linguagem, lugar em que repousa a intimidade do real concreto. Pare Bergson, a duração interior é a vida continua da memória que prolongs o passado indestrutível no presente.
salientar que essa recuperação do passado, adquire, a nossa ver, maior carga tanto expressiva quanto significativa, com o isolamento das falas de seu contexto e o posterior agrupamento delas, constituindo, assim, núcleos independentes, permitindo, pois, uma abertura maior ao texto. Essa abertura causa no leitor um constante "suspense", já causado anteriormente, no próprio narrador-protagonista.

Por outro lado, com a finalidade de reforçar o que acima expusemos, apoiamo-nos na segunda função diegética da descrição estudada por Gérad Genette, a de ordem por vezes, explicativa e simbólica, em que os retratos físicos, as descrições do vestuário, etc., tendem a revelar e ao mesmo tempo justificar a psicologia dos personagens, de que são, não raro, signo, causa e efeito. (GENETTE, 1969, p 58-59)

No início deste estudo estabelecemos uma correspondência entre o discurso narrativo (mas que pode se estender a qualquer tipo de discurso) e uma supernova. O que pretendemos, agora, é ratificar essa correspondência fundamentados em "Famigerado" que, como texto artístico, ambíguo por sua própria natureza, permite ao leitor, a cada instante, receber uma pequena informação de sua totalidade, mas que se desdobra à medida que o discurso se torna complexo, diferente, portanto,do texto científico, cuja informação tem caráter universalizante.

A nosso ver, o processo poético da concepção desse texto, em que se faz presente a complexidade de todo o sistema linguístico, explode em duas novas informações que, justapostas formam uma terceira - "Famigerado".

Portanto:

Discurso do jagunço + Discurso do boticário = "Famigerado"

Dentro desse esquema, "Famigerado" seria um fragmento constituído de mútiplos e variados significantes, os quais carreiam consigo sempre novos significados. Isso, porém, não revela e nem revelará a totalidade do texto, como o recebimento de um fragmento não explica, ate o momento atual, a totalidade da supernova.

2 CONCLUSÃO

Conforme tivemos ocasião de demonstrar, nosso estudo dos dois contos "Plebiscito" e "Famigerado" não se prendeu a um modelo único de leitura. O que pretendemos evidenciar, basicamente,foi a articulação deles, procurando, no entanto, desenvolver alguns pontos ligados a seus constituintes ficcionais, ao salientar ser a narrativa de Artur Azevedo construída dentro de uma ordem geral mais simples e, por isso mesmo, mais linear, destituída, portanto, de cortes espácio-temporais. Tal destituição implica uma estabilidade e estaticidade do foco narrativo, preso a um sistema convencional de contar e permitindo, assim, uma leitura predominantemente sintagmática do texto.

O mesmo não ocorre com relação a "Famigerado", que apresenta não só uma certa linearidade (fala do jagunço), mas também uma verticalidade textual (fala do boticário), decorrentes da exploração, por parte de Guimarães Rosa, dos cortes espácio-temporais. Com isso, a leitura desse conto torna-se, prioritariamente, paradigmática, possibilitando, pois, uma exploração maior das camadas mais profundas e simbólicas da linguagem.

"Plebiscito" e "Famigerado' evidenciam o que se convencionou chamar, atualmente, conto estruturado e conto desestruturado. No entanto, sabemos que em toda desestruturação está implícita uma estruturação que lhe e própria e, nada melhor do que este conto de Guimarães Rosa para justificar o que por último afirmamos.

Feita essa pequena explanação, tentaremos por meio de um gráfico, ilustrar o distanciamento existente entre ambos no plano da narrativa, conforme verificamos durante a leitura analítica que deles fizemos. Partem ambos de um mesmo ponto comum - a definição de um vocábulo, e a resposta dada, representa uma das múltiplas e diversas respostas aos questionamentos que a linguagem faz a ela própria.

CONTOS

Plebiscito

A cena passa-se em 1890.

A família está toda reunida na sala de jantar.

O senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um abade.

Dona Bernardina, sua esposa, está muito entretida a limpar a gaiola de um canário belga.

Os pequenos são dois, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o canário. Ele, encostado à mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das nossas folhas diárias.

Silêncio

De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta:

— Papai, que é plebiscito?

O senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme.

O pequeno insiste:

— Papai?

Pausa:

— Papai?

Dona Bernardina intervém:

— Ó seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar, que lhe faz mal.

O senhor Rodrigues não tem remédio senão abrir os olhos.

— Que é? que desejam vocês?

— Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito.

— Ora essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é plebiscito?

— Se soubesse, não perguntava.

O senhor Rodrigues volta-se para dona Bernardina, que continua muito ocupada com a gaiola:

— Ó senhora, o pequeno não sabe o que é plebiscito!

— Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei.

— Que me diz?! Pois a senhora não sabe o que é plebiscito?

— Nem eu, nem você; aqui em casa ninguém sabe o que é plebiscito.

— Ninguém, alto lá! Creio que tenho dado provas de não ser nenhum ignorante!

— A sua cara não me engana. Você é muito prosa. Vamos: se sabe, diga o que é plebiscito! Então? A gente está esperando! Diga!...

— A senhora o que quer é enfezar-me!

— Mas, homem de Deus, para que você não há de confessar que não sabe? Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Já outro dia foi a mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou, falou, falou, e o menino ficou sem saber!

— Proletário — acudiu o senhor Rodrigues — é o cidadão pobre que vive do trabalho mal remunerado.

— Sim, agora sabe porque foi ao dicionário; mas dou-lhe um doce, se me disser o que é plebiscito sem se arredar dessa cadeira!

— Que gostinho tem a senhora em tornar-me ridículo na presença destas crianças!

— Oh! ridículo é você mesmo quem se faz. Seria tão simples dizer: — Não sei, Manduca, não sei o que é plebiscito; vai buscar o dicionário, meu filho.

O senhor Rodrigues ergue-se de um ímpeto e brada:

— Mas se eu sei!

— Pois se sabe, diga!

— Não digo para me não humilhar diante de meus filhos! Não dou o braço a torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa! Vá para o diabo!

E o senhor Rodrigues, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta.

No quarto havia o que ele mais precisava naquela ocasião: algumas gotas de água de flor de laranja e um dicionário...


A menina toma a palavra:

— Coitado de papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que é tão perigoso!

— Não fosse tolo — observa dona Bernardina — e confessasse francamente que não sabia o que é plebiscito!

— Pois sim — acode Manduca, muito pesaroso por ter sido o causador involuntário de toda aquela discussão — pois sim, mamãe; chame papai e façam as pazes.

— Sim! Sim! façam as pazes! — diz a menina em tom meigo e suplicante. — Que tolice! Duas pessoas que se estimam tanto zangaram-se por causa do plebiscito!

Dona Bernardina dá um beijo na filha, e vai bater à porta do quarto:

— Seu Rodrigues, venha sentar-se; não vale a pena zangar-se por tão pouco.

O negociante esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente.

Ele entra, atravessa a casa, e vai sentar-se na cadeira de balanço.

— É boa! — brada o senhor Rodrigues depois de largo silêncio — é muito boa! Eu! eu ignorar a significação da palavra plebiscito! Eu!...

A mulher e os filhos aproximam-se dele.

O homem continua num tom profundamente dogmático:

— Plebiscito...

E olha para todos os lados a ver se há ali mais alguém que possa aproveitar a lição.

— Plebiscito é uma lei decretada pelo povo romano, estabelecido em comícios.

— Ah! — suspiram todos, aliviados.

— Uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil! É mais um estrangeirismo!...


Arthur Azevedo. Contos fora da moda, Editorial Alhambra – Rio de Janeiro, 1982, pág. 29.
sexta-feira, 27 de julho de 2007


Conto "Famigerado"

Foi de incerta feita — o evento. Quem pode esperar coisa tão sem pés nem cabeça? Eu estava em casa, o arraial sendo de todo tranqüilo. Parou-me à porta o tropel. Cheguei à janela.

Um grupo de cavaleiros. Isto é, vendo melhor: um cavaleiro rente, frente à minha porta, equiparado, exato; e, embolados, de banda, três homens a cavalo. Tudo, num relance, insolitíssimo. Tomei-me nos nervos. O cavaleiro esse — o oh-homem-oh — com cara de nenhum amigo. Sei o que é influência de fisionomia. Saíra e viera, aquele homem, para morrer em guerra. Saudou-me seco, curto pesadamente. Seu cavalo era alto, um alazão; bem arreado, ferrado, suado. E concebi grande dúvida.

Nenhum se apeava. Os outros, tristes três, mal me haviam olhado, nem olhassem para nada. Semelhavam a gente receosa, tropa desbaratada, sopitados, constrangidos coagidos, sim. Isso por isso, que o cavaleiro solerte tinha o ar de regê-los: a meio-gesto, desprezivo, intimara-os de pegarem o lugar onde agora se encostavam. Dado que a frente da minha casa reentrava, metros, da linha da rua, e dos dois lados avançava a cerca, formava-se ali um encantoável, espécie de resguardo. Valendo-se do que, o homem obrigara os outros ao ponto donde seriam menos vistos, enquanto barrava-lhes qualquer fuga; sem contar que, unidos assim, os cavalos se apertando, não dispunham de rápida mobilidade. Tudo enxergara, tomando ganho da topografia. Os três seriam seus prisioneiros, não seus sequazes. Aquele homem, para proceder da forma, só podia ser um brabo sertanejo, jagunço até na escuma do bofe. Senti que não me ficava útil dar cara amena, mostras de temeroso. Eu não tinha arma ao alcance. Tivesse, também, não adiantava. Com um pingo no i, ele me dissolvia. O medo é a extrema ignorância em momento muito agudo. O medo O. O medo me miava. Convidei-o a desmontar, a entrar.

Disse de não, conquanto os costumes. Conservava-se de chapéu. Via-se que passara a descansar na sela — decerto relaxava o corpo para dar-se mais à ingente tarefa de pensar. Perguntei: respondeu-me que não estava doente, nem vindo à receita ou consulta. Sua voz se espaçava, querendo-se calma; a fala de gente de mais longe, talvez são-franciscano. Sei desse tipo de valentão que nada alardeia, sem farroma. Mas avessado, estranhão, perverso brusco, podendo desfechar com algo, de repente, por um és-não-és. Muito de macio, mentalmente, comecei a me organizar. Ele falou:

"Eu vim preguntar a vosmecê uma opinião sua explicada..."

Carregara a celha. Causava outra inquietude, sua farrusca, a catadura de canibal. Desfranziu-se, porém, quase que sorriu. Daí, desceu do cavalo; maneiro, imprevisto. Se por se cumprir do maior valor de melhores modos; por esperteza? Reteve no pulso a ponta do cabresto, o alazão era para paz. O chapéu sempre na cabeça. Um alarve. Mais os ínvios olhos. E ele era para muito. Seria de ver-se: estava em armas — e de armas alimpadas. Dava para se sentir o peso da de fogo, no cinturão, que usado baixo, para ela estar-se já ao nível justo, ademão, tanto que ele se persistia de braço direito pendido, pronto meneável. Sendo a sela, de notar-se, uma jereba papuda urucuiana, pouco de se achar, na região, pelo menos de tão boa feitura. Tudo de gente brava. Aquele propunha sangue, em suas tenções. Pequeno, mas duro, grossudo, todo em tronco de árvore. Sua máxima violência podia ser para cada momento. Tivesse aceitado de entrar e um café, calmava-me. Assim, porém, banda de fora, sem a-graças de hóspede nem surdez de paredes, tinha para um se inquietar, sem medida e sem certeza.

— "Vosmecê é que não me conhece. Damázio, dos Siqueiras... Estou vindo da Serra..."

Sobressalto. Damázio, quem dele não ouvira? O feroz de estórias de léguas, com dezenas de carregadas mortes, homem perigosíssimo. Constando também, se verdade, que de para uns anos ele se serenara — evitava o de evitar. Fie-se, porém, quem, em tais tréguas de pantera? Ali, antenasal, de mim a palmo! Continuava:

— "Saiba vosmecê que, na Serra, por o ultimamente, se compareceu um moço do Governo, rapaz meio estrondoso... Saiba que estou com ele à revelia... Cá eu não quero questão com o Governo, não estou em saúde nem idade... O rapaz, muitos acham que ele é de seu tanto esmiolado..."

Com arranco, calou-se. Como arrependido de ter começado assim, de evidente. Contra que aí estava com o fígado em más margens; pensava, pensava. Cabismeditado. Do que, se resolveu. Levantou as feições. Se é que se riu: aquela crueldade de dentes. Encarar, não me encarava, só se fito à meia esguelha. Latejava-lhe um orgulho indeciso. Redigiu seu monologar.

O que frouxo falava: de outras, diversas pessoas e coisas, da Serra, do São Ão, travados assuntos, inseqüentes, como dificultação. A conversa era para teias de aranha. Eu tinha de entender-lhe as mínimas entonações, seguir seus propósitos e silêncios. Assim no fechar-se com o jogo, sonso, no me iludir, ele enigmava: E, pá:

— "Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado... faz-megerado... falmisgeraldo... familhas-gerado...?

Disse, de golpe, trazia entre dentes aquela frase. Soara com riso seco. Mas, o gesto, que se seguiu, imperava-se de toda a rudez primitiva, de sua presença dilatada. Detinha minha resposta, não queria que eu a desse de imediato. E já aí outro susto vertiginoso suspendia-me: alguém podia ter feito intriga, invencionice de atribuir-me a palavra de ofensa àquele homem; que muito, pois, que aqui ele se famanasse, vindo para exigir-me, rosto a rosto, o fatal, a vexatória satisfação?

— "Saiba vosmecê que saí ind'hoje da Serra, que vim, sem parar, essas seis léguas, expresso direto pra mor de lhe preguntar a pregunta, pelo claro..."

Se sério, se era. Transiu-se-me.

— "Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém ciente, nem têm o legítimo — o livro que aprende as palavras... É gente pra informação torta, por se fingirem de menos ignorâncias... Só se o padre, no São Ão, capaz, mas com padres não me dou: eles logo engambelam... A bem. Agora, se me faz mercê, vosmecê me fale, no pau da peroba, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já lhe perguntei?"

Se simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esses trizes:

— Famigerado?

— "Sim senhor..." — e, alto, repetiu, vezes, o termo, enfim nos vermelhões da raiva, sua voz fora de foco. E já me olhava, interpelador, intimativo — apertava-me. Tinha eu que descobrir a cara. — Famigerado? Habitei preâmbulos. Bem que eu me carecia noutro ínterim, em indúcias. Como por socorro, espiei os três outros, em seus cavalos, intugidos até então, mumumudos. Mas, Damázio:

— "Vosmecê declare. Estes aí são de nada não. São da Serra. Só vieram comigo, pra testemunho..."

Só tinha de desentalar-me. O homem queria estrito o caroço: o verivérbio.

— Famigerado é inóxio, é "célebre", "notório", "notável"...

— "Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender. Mais me diga: é desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?"

— Vilta nenhuma, nenhum doesto. São expressões neutras, de outros usos...

— "Pois... e o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?"

— Famigerado? Bem. É: "importante", que merece louvor, respeito...

— "Vosmecê agarante, pra a paz das mães, mão na Escritura?"

Se certo! Era para se empenhar a barba. Do que o diabo, então eu sincero disse:

— Olhe: eu, como o sr. me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora destas era ser famigerado — bem famigerado, o mais que pudesse!...

— "Ah, bem!..." — soltou, exultante.

Saltando na sela, ele se levantou de molas. Subiu em si, desagravava-se, num desafogaréu. Sorriu-se, outro. Satisfez aqueles três: — "Vocês podem ir, compadres. Vocês escutaram bem a boa descrição..." — e eles prestes se partiram. Só aí se chegou, beirando-me a janela, aceitava um copo d'água. Disse: — "Não há como que as grandezas machas duma pessoa instruída!" Seja que de novo, por um mero, se torvava? Disse: — "Sei lá, às vezes o melhor mesmo, pra esse moço do Governo, era ir-se embora, sei não..." Mas mais sorriu, apagara-se-lhe a inquietação. Disse: — "A gente tem cada cisma de dúvida boba, dessas desconfianças... Só pra azedar a mandioca..." Agradeceu, quis me apertar a mão. Outra vez, aceitaria de entrar em minha casa. Oh, pois. Esporou, foi-se, o alazão, não pensava no que o trouxera, tese para alto rir, e mais, o famoso assunto.


Guimarães Rosa
Texto extraído do livro "Primeiras Estórias", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1988, p 13


BIBLIOGRAFIA

ALONSO, Dámaso. 1960. Poesia espanhola; ensaio de métodos e limites estilísticos. Rio de Janeiro, INL, 471 p.
ARISTÓTELES, 1964. Arte retórica e arte poética. São Paulo, D. E. L. 329 p
AZEVEDO, Artur. 1967. "Plebiscito". In: CELSO Cunha, Manual de Português. Rio de Janeiro, São Jose, p 285-288

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BARTHES, Roland et alii. 1972. Literatura e semiologia; pesquisas semiológicas. Petrópolis, Vozes, 159 p
_______. 1977. Ensaios criíicos. São Paulo, Edições 70, 378 p
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sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Origem da Tragédia


NIETZSCHE, Frederico. Origem da tragédia.
Lisboa, Guimarães Editores, 1972, 179 p

Após uma série de reflexões sobre o povo grego e a arte grega, esta considerada a expressão da felicidade do homem, bela, perfeita, sedutora, consagrada sobretudo à euforia vital e àquele o modelo de organização política, social, científica e religiosa do espírito ocidental, Nietzsche chega à conclusão de que esse povo necessitou de uma arte que refletisse o elemento da vida e que a serenidade mostrada na Grécia era apenas aparente. Daí, ele inferir ser a tragédia (nascida do gênio da música), nas suas origens, a revelação de um espírito diferente daquele ora apresentado pelos gregos e influenciado pela filosofia socrático-platônica.
Essa filosofia, para ele, constituiu o declínio e a morte da verdadeira tragédia, daquela que remetia ao sentido primeiro da condição humana, de vez que para Nietzsche “o mundo e a existência só podem ser justificados como fenômeno estético”. Assim, com essa justificativa, ambos estarão livres de uma interpretação e de uma explicação ligadas à moral e vinculadas à doutrina cristã. O artista, para Nietzsche, é o que sabe descobrir atrás da aparência a verdadeira interpretação da vida.
Recorreu a Kant e a Schopenhauer para expressar suas ideias revolucionárias, embora ele próprio reconhecesse que poderia havê-las exposto sem o auxílio desses dois filósofos. O importante é notar que a ideia de Vontade universal de Schopenhauer, isto é, de que o mundo externo, tal como nos é oferecido, não passa de uma representação inconsistente e enganosa na sua aparente multiplicidade e que somente nas intuições puras de continuidade (espaço) e de sucessão (tempo), é que parecemos ser entes distintos. É justamente essa diversidade que constitui o “princípio da individuação” que a vida se encontra dividida em organismos distintos, existindo tanto em lugares quanto em épocas diferentes. O espaço e o tempo representam, como o próprio Schopenhauer concebe, e Nietzsche se apóia, ‘Véu de Maia’, isto é, a ilusão escondendo a unidade das coisas, de vez que o que existe, realmente, é a espécie,a vida, a vontade. Esta, situada sob o intelecto consciente ou inconsciente, é o único elemento permanente e imutável na mente, uma força vital esforçada e persistente, uma atividade espontânea, uma fonte de desejo imperioso. O que Schopenhauer pretende mostrar com isso é que o homem é empurrado, impelido pelo que sente, pelos seus instintos e que a maior parte das vezes não tem consciência de sua atuação.
Baseado nisso é que Nietzsche compreendeu e interpretou essa filosofia encarando a criação artística como ato de que a Vontade universal seria a potência, de vez que, conforme se observou anteriormente, ele próprio afirma que “o mundo e a existência só podem ser justificados como fenômeno estético”. Para justificar essa afirmativa, lançou mão de duas figuras significativas do mundo grego – Dionísios e Apolo, – desenvolvendo, a partir desses dois espíritos ou instintos, suas ideias a respeito da origem e da morte da tragédia, da necessidade de haver existido e perecido a arte dionisíaca para que pudesse surgir e florescer a arte apolínea.
Dionísios era a reconstrução original, a essência, a música e Apolo a representação, a plasticidade, a aparência, a língua.
Da oposição e da união desses dois impulsos, tão díspares e ao mesmo tempo tão necessários um ao outro, é que surgiu a tragédia ática, considerada por Nietzsche como modelo de obra superior.
Cada impulso representava um mundo diferente: o do sonho e o da embriaguez. O estado dionisíaco, sob o poderio da beberagem narcótica, propiciava o grito, o canto, a dança, o gesto em que o homem “primitivo”, exaltado aniquilava-se num total esquecimento de si próprio. Nesse estado de embriaguez, havia uma ardência de vida, uma aliança entre os seres e uma reconciliação da natureza com o espírito humano.
Através do canto, e não da fala, da dança e não do andar, dos gestos de ritmo encantatório é que o homem ascende de uma esfera superior, mística, e penetra no enigmático Uno primordial. Os homens eram excitados pela música dionisíaca com um arrepio de terror, havendo, pois, uma divinização do humano, momento em que este passa a ser considerado arte e não artista.
No ditirambo, isto é, no canto em louvor a Dionísios, o homem é arrebatado até a exaltação suprema de todas as suas faculdades simbólicas, exprimindo constantemente sentimentos até então desconhecidos. Perde a sua individualidade para tornar-se a Unidade e daí em diante a essência da natureza só poderá ser exprimida através de símbolos. É um novo mundo simbólico que se abre e para isso o elemento fulcral é a simbólica do corpo humano, cada vez mais pluralizada, através dos lábios, palavras, rostos, gestos e de todas as atitudes da dança, ritmando os movimentos de todos os membros. Com isso, nascem outras forças simbólicas, as proporcionadas agora pela música, com toda a sua significância, apresentando uma lógica, uma linguagem e, sobretudo uma sintaxe próprias. Essa música possui a capacidade de remeter o homem à sua interioridade, não para fechá-lo em si mesmo, mas para obrigá-lo a ver mais profunda e claramente a si e aos outros. É através dela que o homem cria as suas próprias imagens, imagens essas de caráter puramente individual e intransferível, sem possibilidade de gerar um conteúdo universal. Com isso, Nietzsche condena Aristóteles e sua Poética, no que diz respeito a mímesis. Foi aí, segundo se pode depreender do pensamento nietzschiano, que o filósofo não compreendeu o verdadeiro sentido do homem trágico, que se tornou, portanto, estranho a ele e com isso à sua própria filosofia. Imitar e repetir conduziria, como conduziu segundo Nietzsche, à morte da tragédia, uma vez que ambos produziriam a rejeição de toda a carga de significância corporal-corpória que a tragédia primitiva carregava consigo.
O Apolíneo representa o sonho, a serenidade, o perene reflexo da visão da beleza, a impassividade das emoções exaltadas.
Foi esse instinto que gerou a poesia lírica e as artes plásticas, de vez que ambas refletem um estado de elevação mental à pura contemplação livre da verdade. Representa, portanto, o princípio da individuação (essa individuação, ressalte-se, não torna o sujeito psicológico, nem a personagem individual), isto é, o princípio das formas aparentes dos fenômenos com suas claras e evidentes delimitações. São justamente essas aparências que vão ocasionar para Nietzsche o declínio e a morte da verdadeira tragédia de vez que elas representam, inclusive, uma evolução da verdadeira tragédia e com isso a perda daquele caráter puro, individual, intransferível e sem nenhuma possibilidade de gerar um conteúdo universal, proporcionado pela música advinda do sentimento primitivo e singular do coro trágico e encontrada somente com o espírito dionisíaco. A música, então, passa a ser previamente determinada, em que não mais existe a violência comovedora do som e a torrente unitária da harmonia, conforme salienta o próprio Nietzsche. O coro, constituído por um grupo anônimo, por personagem coletiva, perdeu agora toda a sua simbologia, de vez que passou a ser explicado de maneira clara e precisa. Essa explicação, conforme esclarece o próprio autor, deve-se ao fato do nascimento do espírito científico e com este a possibilidade de penetrar e desvendar as leis da natureza, aniquilando, portanto, o mito que, segundo Nietzsche, quer ser ressentido pela percepção na qualidade de símbolo único de generalidade e verdade imutáveis, no mais profundo do infinito. O herói apolíneo deve se defender do olhar, não só do coro, como dos espectadores, olhar esse que contribui decisivamente para a morte do mito.
É nesse ponto que vai haver a triadíca separação espectador, ator e autor, conferindo assim à tragédia uma conotação puramente ética, conotação essa, conforme se verifica, instaurada fundamentalmente por Sócrates e o seu conceito de Verdade.
No que diz respeito à representação teatral, Nietzsche procura mostrar que com o banimento do gênio da música e o florescimento do signo verbal, este considerado, por ele Nietzsche, como um simples enunciado, destituído de significação superior, e codificado previamente fundava-se sobre regras e princípios impostos pela filosofia socrático-platônica e nisso funcionava como lei intocável. O signo verbal estava, portanto, preso a um sistema absoluto e cuja organização se fundava também num sistema coerente. Esse mesmo signo verbal representava um elemento sem tonalidade, ou seja, representava o discurso matafísico-platônico. É aí que a tragédia passa a ser discurso e este evidenciava uma realidade dentro dos moldes estabelecidos pelo platonismo, isto é, uma realidade apenas aparente, em que se destaca a verossimilhança para corroborar ainda mais o discurso metafísico-platônico, como sendo algo consciente.
Além disso, a ilusória cena apolínea, segundo ele próprio deixa transparecer, é marcada, sobretudo, pelo espaço em que a figura do ‘deus ex-machina’ ,substituindo a consolação metafísica, passou a representar o espaço de uma transparência equivalente ao mundo das ideias platônicas. Novamente aí, Nietzsche ressalta o corpo destituído do seu elemento simbólico e altamente significante.
O autor de Zaratustra aborda também o problema do herói apolíneo. Este representava a mais alta manifestação aparente da vontade, e conforme as suas próprias palavras, após ter sido suficientemente torturado pela sorte (...) obtinha uma recompensa (...) um prêmio, prêmio esse que indicava o resultado da vitória que teria de ser obtida por ele herói. Essa vitória desse tipo de herói vivida agora por um ator especializado, personagem individualizada, e que representava, no entanto, o herói de uma outra época, era alcançada graças ao discurso eloquente, com um vocabulário e uma estrutura pertencentes a uma linguagem jurídica, proferido, o discurso, por ele no desenlace dos dramas e dirigido a um coro, que embora anônimo, expressava os anseios, os temores, etc. de uma comunidade cívica. Evidenciava, com isso, nitidamente, a manifestação de novo espírito anti-dionisíaco, de vez que o final da antiga tragédia evocava a consolação metafísica, conferindo a, ela tragédia, um sabor como diz o autor, inexplicável, diferente, portanto, desse novo espírito que ora se afirmava.
Nietzsche procura mostrar na Origem da tragédia uma identificação entre Sócrates, herói dialético do drama platônico e o herói de Eurípedes, de vez que este último também é forçado a justificar os seus atos pelo recurso a razões e a argumentos, tal como o faz o herói do drama platônico. Eurípedes, salienta Nietzsche, tanto é criador (poeta) quanto espectador (pensador), daí se poder ver que nele seu princípio estético, assim como o de Sócrates, é algo consciente, racional e que a beleza estava também ligada ao eco do pensamento consciente. Daí, Nietzsche dizer que se pode ter o direito de ver em Eurípedes o poeta do socratismo estético.
Com isso, o filósofo ressalta, mais uma vez, a influência da dialética do saber socrático na estrutura dramática, sobretudo na construção do conjunto da cena, conjunto esse todo fundamentado na sua lógica, a qual excluía todo e qualquer elemento significante. Nesse ponto, Nietzsche acusa o filósofo otimista, da morte da tragédia (que se tornou drama burguês), com a instauração dos seus preceitos, cujas consequências desse otimismo são destacadas pelo autor da seguinte maneira: virtude é ciência; só se peca por ignorância; o homem virtuoso é o mais feliz.
A influencia da dialética otimista foi tão forte que “munida com o chicote dos silogismos, expulsa a música para fora da tragédia”, destruindo com isso sua própria essência e aniquilando o coro como fizera Sófocles, de quem o drama nada mais era, segundo Nietzsche deixa entrever, apenas um encadeamento.
Após haver iniciado Sócrates e seus seguidores como os responsáveis pelas proibições de proveniência ética, o autor finaliza seu estudo apontado a ópera, ou conforme ele próprio denomina, cultura é ópera, para caracterizar a cultura socrática, de vez que este gênero musical, de origem desconhecida, mítica, no século XIX, representará na Itália o que o drama representou na Alemanha, observando, é claro, as especialidades de um e de outro gênero. Em outras palavras: Nietzsche mostra que a ópera não conseguiu ser na Itália o que o drama wagneriano foi na Alemanha.
Como exemplo disso, cita o aparecimento do stilo rappresentativo e dos recitativos. O stilo rappresentativo é caracterizado por ele como alternação de discursos impressionantes, patéticos, mal cantados, com interjeições e frases melodiosas, exterior, artificial e profundamente oposto aos ímpetos dionisíacos, “onde a música é considerada escrava e o texto senhor, onde a música é comparada ao corpo e a palavra à alma, cujo supremo fim é uma pintura musical imitativa, pouco mais ou menos como aconteceu outrora no último ditirambo ático”. Nietzsche chama a atenção para o recitativo, mostrando que ele não teve origem em nenhum instinto artístico e definindo-o como um amálgama das interpretações épica e lírica. Esse estilo foi considerado uma ressurreição da música mais poderosamente expressiva dos antigos gregos, de vez que parecia fundir e confundir música e palavra. Ele passou a valer, segundo Nietzsche, a língua restaurada do homem primitivo.
Continuando seu pensamento a respeito da ópera, o autor evidencia que o princípio fundamental desta forma de arte, baseado numa concepção teológica, era a separação estanque entre o bem e o mal e que o homem já nascia predestinado, tanto a um quanto a outro. Afora a isso, Nietzsche ainda evidencia a concepção do homem primitivo como o homem naturalmente artista e bom.
Finalizando, observa-se que o autor faz várias asserções a respeito da ópera, tais como: é obra do homem teórico, do crítico leigo e não do artista; é transformação do gozo musical em mera compreensão racional de uma retórica da paixão feita de sons e de palavras; postula que em todo o homem dotado de sensibilidade existe um artista, (daí ser ela apenas a expressão do diletantismo na arte); reflete a concepção socrática do mundo; simboliza a serenidade alexandrina, etc. Essas asserções fizeram com que o filósofo concluísse ser a ópera um organismo parasitário que se alimenta da seiva da verdadeira arte, conseguindo desponjar a música do seu caráter de expressão dionisíaca do mundo. Nietzsche pretendeu mostrar, entre outras coisas, no seu estudo sobre a Origem da tragédia, que esta proveio da música e que a filosofia socrático-platônica ocasionou o declínio e a morte da verdadeira tragédia, assim como o fim do mito. A arte grega para ele, e particularmente a tragédia, retardaram o desaparecimento do mito trágico, o qual representava um suplemento metafísico da realidade natural, sem o que esta seria insuportável. O mito trágico tem por finalidade convencer o homem de que tudo aquilo que lhe parece horrível e monstruoso nada mais é do que uma representação estética. Isso reflete a concepção metafísica de Nietzsche a respeito da arte e com ela a sua justificativa do mundo e da existência.