sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Origem da Tragédia


NIETZSCHE, Frederico. Origem da tragédia.
Lisboa, Guimarães Editores, 1972, 179 p

Após uma série de reflexões sobre o povo grego e a arte grega, esta considerada a expressão da felicidade do homem, bela, perfeita, sedutora, consagrada sobretudo à euforia vital e àquele o modelo de organização política, social, científica e religiosa do espírito ocidental, Nietzsche chega à conclusão de que esse povo necessitou de uma arte que refletisse o elemento da vida e que a serenidade mostrada na Grécia era apenas aparente. Daí, ele inferir ser a tragédia (nascida do gênio da música), nas suas origens, a revelação de um espírito diferente daquele ora apresentado pelos gregos e influenciado pela filosofia socrático-platônica.
Essa filosofia, para ele, constituiu o declínio e a morte da verdadeira tragédia, daquela que remetia ao sentido primeiro da condição humana, de vez que para Nietzsche “o mundo e a existência só podem ser justificados como fenômeno estético”. Assim, com essa justificativa, ambos estarão livres de uma interpretação e de uma explicação ligadas à moral e vinculadas à doutrina cristã. O artista, para Nietzsche, é o que sabe descobrir atrás da aparência a verdadeira interpretação da vida.
Recorreu a Kant e a Schopenhauer para expressar suas ideias revolucionárias, embora ele próprio reconhecesse que poderia havê-las exposto sem o auxílio desses dois filósofos. O importante é notar que a ideia de Vontade universal de Schopenhauer, isto é, de que o mundo externo, tal como nos é oferecido, não passa de uma representação inconsistente e enganosa na sua aparente multiplicidade e que somente nas intuições puras de continuidade (espaço) e de sucessão (tempo), é que parecemos ser entes distintos. É justamente essa diversidade que constitui o “princípio da individuação” que a vida se encontra dividida em organismos distintos, existindo tanto em lugares quanto em épocas diferentes. O espaço e o tempo representam, como o próprio Schopenhauer concebe, e Nietzsche se apóia, ‘Véu de Maia’, isto é, a ilusão escondendo a unidade das coisas, de vez que o que existe, realmente, é a espécie,a vida, a vontade. Esta, situada sob o intelecto consciente ou inconsciente, é o único elemento permanente e imutável na mente, uma força vital esforçada e persistente, uma atividade espontânea, uma fonte de desejo imperioso. O que Schopenhauer pretende mostrar com isso é que o homem é empurrado, impelido pelo que sente, pelos seus instintos e que a maior parte das vezes não tem consciência de sua atuação.
Baseado nisso é que Nietzsche compreendeu e interpretou essa filosofia encarando a criação artística como ato de que a Vontade universal seria a potência, de vez que, conforme se observou anteriormente, ele próprio afirma que “o mundo e a existência só podem ser justificados como fenômeno estético”. Para justificar essa afirmativa, lançou mão de duas figuras significativas do mundo grego – Dionísios e Apolo, – desenvolvendo, a partir desses dois espíritos ou instintos, suas ideias a respeito da origem e da morte da tragédia, da necessidade de haver existido e perecido a arte dionisíaca para que pudesse surgir e florescer a arte apolínea.
Dionísios era a reconstrução original, a essência, a música e Apolo a representação, a plasticidade, a aparência, a língua.
Da oposição e da união desses dois impulsos, tão díspares e ao mesmo tempo tão necessários um ao outro, é que surgiu a tragédia ática, considerada por Nietzsche como modelo de obra superior.
Cada impulso representava um mundo diferente: o do sonho e o da embriaguez. O estado dionisíaco, sob o poderio da beberagem narcótica, propiciava o grito, o canto, a dança, o gesto em que o homem “primitivo”, exaltado aniquilava-se num total esquecimento de si próprio. Nesse estado de embriaguez, havia uma ardência de vida, uma aliança entre os seres e uma reconciliação da natureza com o espírito humano.
Através do canto, e não da fala, da dança e não do andar, dos gestos de ritmo encantatório é que o homem ascende de uma esfera superior, mística, e penetra no enigmático Uno primordial. Os homens eram excitados pela música dionisíaca com um arrepio de terror, havendo, pois, uma divinização do humano, momento em que este passa a ser considerado arte e não artista.
No ditirambo, isto é, no canto em louvor a Dionísios, o homem é arrebatado até a exaltação suprema de todas as suas faculdades simbólicas, exprimindo constantemente sentimentos até então desconhecidos. Perde a sua individualidade para tornar-se a Unidade e daí em diante a essência da natureza só poderá ser exprimida através de símbolos. É um novo mundo simbólico que se abre e para isso o elemento fulcral é a simbólica do corpo humano, cada vez mais pluralizada, através dos lábios, palavras, rostos, gestos e de todas as atitudes da dança, ritmando os movimentos de todos os membros. Com isso, nascem outras forças simbólicas, as proporcionadas agora pela música, com toda a sua significância, apresentando uma lógica, uma linguagem e, sobretudo uma sintaxe próprias. Essa música possui a capacidade de remeter o homem à sua interioridade, não para fechá-lo em si mesmo, mas para obrigá-lo a ver mais profunda e claramente a si e aos outros. É através dela que o homem cria as suas próprias imagens, imagens essas de caráter puramente individual e intransferível, sem possibilidade de gerar um conteúdo universal. Com isso, Nietzsche condena Aristóteles e sua Poética, no que diz respeito a mímesis. Foi aí, segundo se pode depreender do pensamento nietzschiano, que o filósofo não compreendeu o verdadeiro sentido do homem trágico, que se tornou, portanto, estranho a ele e com isso à sua própria filosofia. Imitar e repetir conduziria, como conduziu segundo Nietzsche, à morte da tragédia, uma vez que ambos produziriam a rejeição de toda a carga de significância corporal-corpória que a tragédia primitiva carregava consigo.
O Apolíneo representa o sonho, a serenidade, o perene reflexo da visão da beleza, a impassividade das emoções exaltadas.
Foi esse instinto que gerou a poesia lírica e as artes plásticas, de vez que ambas refletem um estado de elevação mental à pura contemplação livre da verdade. Representa, portanto, o princípio da individuação (essa individuação, ressalte-se, não torna o sujeito psicológico, nem a personagem individual), isto é, o princípio das formas aparentes dos fenômenos com suas claras e evidentes delimitações. São justamente essas aparências que vão ocasionar para Nietzsche o declínio e a morte da verdadeira tragédia de vez que elas representam, inclusive, uma evolução da verdadeira tragédia e com isso a perda daquele caráter puro, individual, intransferível e sem nenhuma possibilidade de gerar um conteúdo universal, proporcionado pela música advinda do sentimento primitivo e singular do coro trágico e encontrada somente com o espírito dionisíaco. A música, então, passa a ser previamente determinada, em que não mais existe a violência comovedora do som e a torrente unitária da harmonia, conforme salienta o próprio Nietzsche. O coro, constituído por um grupo anônimo, por personagem coletiva, perdeu agora toda a sua simbologia, de vez que passou a ser explicado de maneira clara e precisa. Essa explicação, conforme esclarece o próprio autor, deve-se ao fato do nascimento do espírito científico e com este a possibilidade de penetrar e desvendar as leis da natureza, aniquilando, portanto, o mito que, segundo Nietzsche, quer ser ressentido pela percepção na qualidade de símbolo único de generalidade e verdade imutáveis, no mais profundo do infinito. O herói apolíneo deve se defender do olhar, não só do coro, como dos espectadores, olhar esse que contribui decisivamente para a morte do mito.
É nesse ponto que vai haver a triadíca separação espectador, ator e autor, conferindo assim à tragédia uma conotação puramente ética, conotação essa, conforme se verifica, instaurada fundamentalmente por Sócrates e o seu conceito de Verdade.
No que diz respeito à representação teatral, Nietzsche procura mostrar que com o banimento do gênio da música e o florescimento do signo verbal, este considerado, por ele Nietzsche, como um simples enunciado, destituído de significação superior, e codificado previamente fundava-se sobre regras e princípios impostos pela filosofia socrático-platônica e nisso funcionava como lei intocável. O signo verbal estava, portanto, preso a um sistema absoluto e cuja organização se fundava também num sistema coerente. Esse mesmo signo verbal representava um elemento sem tonalidade, ou seja, representava o discurso matafísico-platônico. É aí que a tragédia passa a ser discurso e este evidenciava uma realidade dentro dos moldes estabelecidos pelo platonismo, isto é, uma realidade apenas aparente, em que se destaca a verossimilhança para corroborar ainda mais o discurso metafísico-platônico, como sendo algo consciente.
Além disso, a ilusória cena apolínea, segundo ele próprio deixa transparecer, é marcada, sobretudo, pelo espaço em que a figura do ‘deus ex-machina’ ,substituindo a consolação metafísica, passou a representar o espaço de uma transparência equivalente ao mundo das ideias platônicas. Novamente aí, Nietzsche ressalta o corpo destituído do seu elemento simbólico e altamente significante.
O autor de Zaratustra aborda também o problema do herói apolíneo. Este representava a mais alta manifestação aparente da vontade, e conforme as suas próprias palavras, após ter sido suficientemente torturado pela sorte (...) obtinha uma recompensa (...) um prêmio, prêmio esse que indicava o resultado da vitória que teria de ser obtida por ele herói. Essa vitória desse tipo de herói vivida agora por um ator especializado, personagem individualizada, e que representava, no entanto, o herói de uma outra época, era alcançada graças ao discurso eloquente, com um vocabulário e uma estrutura pertencentes a uma linguagem jurídica, proferido, o discurso, por ele no desenlace dos dramas e dirigido a um coro, que embora anônimo, expressava os anseios, os temores, etc. de uma comunidade cívica. Evidenciava, com isso, nitidamente, a manifestação de novo espírito anti-dionisíaco, de vez que o final da antiga tragédia evocava a consolação metafísica, conferindo a, ela tragédia, um sabor como diz o autor, inexplicável, diferente, portanto, desse novo espírito que ora se afirmava.
Nietzsche procura mostrar na Origem da tragédia uma identificação entre Sócrates, herói dialético do drama platônico e o herói de Eurípedes, de vez que este último também é forçado a justificar os seus atos pelo recurso a razões e a argumentos, tal como o faz o herói do drama platônico. Eurípedes, salienta Nietzsche, tanto é criador (poeta) quanto espectador (pensador), daí se poder ver que nele seu princípio estético, assim como o de Sócrates, é algo consciente, racional e que a beleza estava também ligada ao eco do pensamento consciente. Daí, Nietzsche dizer que se pode ter o direito de ver em Eurípedes o poeta do socratismo estético.
Com isso, o filósofo ressalta, mais uma vez, a influência da dialética do saber socrático na estrutura dramática, sobretudo na construção do conjunto da cena, conjunto esse todo fundamentado na sua lógica, a qual excluía todo e qualquer elemento significante. Nesse ponto, Nietzsche acusa o filósofo otimista, da morte da tragédia (que se tornou drama burguês), com a instauração dos seus preceitos, cujas consequências desse otimismo são destacadas pelo autor da seguinte maneira: virtude é ciência; só se peca por ignorância; o homem virtuoso é o mais feliz.
A influencia da dialética otimista foi tão forte que “munida com o chicote dos silogismos, expulsa a música para fora da tragédia”, destruindo com isso sua própria essência e aniquilando o coro como fizera Sófocles, de quem o drama nada mais era, segundo Nietzsche deixa entrever, apenas um encadeamento.
Após haver iniciado Sócrates e seus seguidores como os responsáveis pelas proibições de proveniência ética, o autor finaliza seu estudo apontado a ópera, ou conforme ele próprio denomina, cultura é ópera, para caracterizar a cultura socrática, de vez que este gênero musical, de origem desconhecida, mítica, no século XIX, representará na Itália o que o drama representou na Alemanha, observando, é claro, as especialidades de um e de outro gênero. Em outras palavras: Nietzsche mostra que a ópera não conseguiu ser na Itália o que o drama wagneriano foi na Alemanha.
Como exemplo disso, cita o aparecimento do stilo rappresentativo e dos recitativos. O stilo rappresentativo é caracterizado por ele como alternação de discursos impressionantes, patéticos, mal cantados, com interjeições e frases melodiosas, exterior, artificial e profundamente oposto aos ímpetos dionisíacos, “onde a música é considerada escrava e o texto senhor, onde a música é comparada ao corpo e a palavra à alma, cujo supremo fim é uma pintura musical imitativa, pouco mais ou menos como aconteceu outrora no último ditirambo ático”. Nietzsche chama a atenção para o recitativo, mostrando que ele não teve origem em nenhum instinto artístico e definindo-o como um amálgama das interpretações épica e lírica. Esse estilo foi considerado uma ressurreição da música mais poderosamente expressiva dos antigos gregos, de vez que parecia fundir e confundir música e palavra. Ele passou a valer, segundo Nietzsche, a língua restaurada do homem primitivo.
Continuando seu pensamento a respeito da ópera, o autor evidencia que o princípio fundamental desta forma de arte, baseado numa concepção teológica, era a separação estanque entre o bem e o mal e que o homem já nascia predestinado, tanto a um quanto a outro. Afora a isso, Nietzsche ainda evidencia a concepção do homem primitivo como o homem naturalmente artista e bom.
Finalizando, observa-se que o autor faz várias asserções a respeito da ópera, tais como: é obra do homem teórico, do crítico leigo e não do artista; é transformação do gozo musical em mera compreensão racional de uma retórica da paixão feita de sons e de palavras; postula que em todo o homem dotado de sensibilidade existe um artista, (daí ser ela apenas a expressão do diletantismo na arte); reflete a concepção socrática do mundo; simboliza a serenidade alexandrina, etc. Essas asserções fizeram com que o filósofo concluísse ser a ópera um organismo parasitário que se alimenta da seiva da verdadeira arte, conseguindo desponjar a música do seu caráter de expressão dionisíaca do mundo. Nietzsche pretendeu mostrar, entre outras coisas, no seu estudo sobre a Origem da tragédia, que esta proveio da música e que a filosofia socrático-platônica ocasionou o declínio e a morte da verdadeira tragédia, assim como o fim do mito. A arte grega para ele, e particularmente a tragédia, retardaram o desaparecimento do mito trágico, o qual representava um suplemento metafísico da realidade natural, sem o que esta seria insuportável. O mito trágico tem por finalidade convencer o homem de que tudo aquilo que lhe parece horrível e monstruoso nada mais é do que uma representação estética. Isso reflete a concepção metafísica de Nietzsche a respeito da arte e com ela a sua justificativa do mundo e da existência.

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